terça-feira, 9 de abril de 2019
"Justiça nota zero", por José Nêumanne
Apesar de não haver batido o recorde da participação de cidadãos nas
ruas, ocorrido nas manifestações de mais de milhão contra a má gestão do
Estado e a favor da deposição da então presidente Dilma Rousseff entre
2013 e 2016, impressionou a multidão que foi à Paulista domingo contra o
Supremo Tribunal Federal (STF) em geral e, em especial, seu ministro
Gilmar Mendes. Fotos e vídeos circulando em perfis sociais não permitem
definir quantos manifestantes se reuniram vestidos de verde e amarelo e
empunhando bandeiras. Isso se deve parcialmente à preguiça de plantões
de domingo e em parte ao desprezo que meios de comunicação e autoridade
policial devotam à cidadania desorganizada e desamparada. Ao não prestar
o serviço relevante à sociedade divulgando a contabilidade das massas
indóceis a Polícia Militar deixa esses cálculos à mercê da parcialidade
dos militantes que as convocam. E também revela o medo que seus chefes,
da alta hierarquia no Estado, têm da indignação das pessoas que vão às
ruas protestar – pânico que, por sinal, não disfarça um desdém
criminoso.
No entanto, as imagens publicadas apenas na rede mundial dos
computadores não deixam dúvida de que é notória a irritação que se
espalha pela Nação ante a indiferença por seus anseios de parte da
cúpula do Judiciário, que se esmera em sabotar e ridicularizar os
esforços de agentes da lei. Estes veem seu longo e penoso trabalho se
perder no latinório vulgar dos togados. Parte da explicação desse
divórcio se explica, mas não se justifica, pela nomeação pelas
autoridades, tratada com preguiça e desídia pelo Legislativo, de
julgadores dos tribunais superiores, em especial do Supremo. Em
exercício de mera demonstração de conta de padaria, constatei na semana
passada, em artigo publicado no Estado, que, como está definido no título, Dos 11 do Supremo, só 2 são juízes concursados
(Página 2, 3/04/19). Nem é preciso fazer soma similar para revelar essa
constatação no Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Tribunal Superior
do Trabalho (TST) e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Para refrear a tentação de quem, na certa, argumentará que assim a lei
prevê, este autor avisa desde já que esta é apenas uma informação, sem
adiantar juízo nenhum de valor. Serve tão somente para facilitar a
compreensão do leigo – grei à qual este escriba pertence – em relação ao
evidente divórcio existente entre sentenças lavradas por juízes jovens,
bem preparados e em contato com a vida real de lar e rua e seu
desmanche nos julgamentos de turmas e plenários das chamadas altas
cortes, viciadas pelo corporativismo dos quintos (legais) de corporações
profissionais ou funcionais com assento nos pináculos do Poder que se
define como “justo”.
A atual composição do Supremo Tribunal Federal (STF) é o exemplo maior
desse desajuste. O presidente Dias Toffoli foi reprovado em dois
concursos públicos para a magistratura e subiu da condição de
advogadinho do PT para advogadão-geral da União e daí para o ápice da
carreira. Lula, que o nomeou, preencheu mais duas vagas com Cármen Lúcia
e Lewandowski. Dilma, em um mandato e meio, mandou para o topo mais
quatro (!): Fachin (que manifestou apoio à candidatura da petista),
Rosa, Fux e Barroso, num total de sete pelo PT. Outros quatro chegaram
ao ápice da carreira pelas mãos de Sarney, Collor, Fernando Henrique e
Temer.
Nem sempre essa composição distorcida foi patrulhada pela turba. Esse
ódio, ao contrário, foi destilado exatamente da lua de mel vivida entre o
STF e a opinião pública durante o julgamento da Ação Penal 470,
cognominada de mensalão pelo delator da devassa, Roberto Jefferson, dono
do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) de nossos dias. A popularidade
gozada pelo relator do processo, Joaquim Barbosa, e a impopularidade com
que o povão marcou o revisor, Ricardo Lewandowski, foram substituídas
no momento em que a Operação Lava Jato começou a incluir tucanos entre
seus denunciados, acusados e réus. Foi isso que fez Gilmar Mendes, que
foi advogado-geral de FHC, acionar o dispositivo dos habeas corpus a
granel. A atuação do procurador, que perdoa em vez de denunciar, como
seria mais próprio de sua origem, chegou a extremos como o de
desqualificar os ex-colegas em ações de combate à corrupção, jogando no
lixo tradições judiciais ancestrais, tais como a renúncia ao julgamento
por suspeição e a acusação insultuosa, genérica e indiscriminada sem
nomes nem provas.
O conjunto da obra do mato-grossense inspirou o jurista Modesto
Carvalhosa a encaminhar ao Senado em 14 de março um requerimento a seu
presidente, Davi Alcolumbre (DEM-AP), para abrir um processo de
impeachment contra ele. Como já jogou um balde de gelo na fogueira que
poderia ser ateada no outro lado da Praça dos Três Poderes, o varão da
fronteira terminou sendo no domingo 7 de abril o destinatário do recado
da multidão na manifestação referida no início deste texto.
Carvalhosa, aliás, também é autor de proposta mais ambiciosa, pregando
uma Constituinte exclusiva com mandatários impedidos de concorrer a
cargos públicos até o cumprimento de uma quarentena. Esta teria mais
efeito genérico do que o caso específico do tempestuoso ministro que se
considera “supremo”. A falta de prática e o parti pris de
advogados e procuradores, mais numerosos na atual composição, dada como
a pior da História, poderia, por exemplo, ser substituída pelo tal
“notório saber”, expressão constitucional vaga, que poucos senadores são
capazes de entender por falta de prática, exigindo prestação de
concursos públicos para a magistratura e, à falta disso, currículo
equivalente ao cargo. Providência mais urgente seria a de pôr fim à
vitaliciedade do posto, limitando-o, por exemplo, a um mandato dos
senadores que os sabatinam: oito anos.
Nem a urgente revogação da “PEC da bengala”, outra forma de mudar ocupantes das cadeiras no STF, porém, bastará para garantir o caput do
artigo 5.º da Constituição federal, que reza: “todos são iguais perante
a lei”. O inciso LVII deste artigo preceitua que “ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”
e tem provocado uma guerra em que ele é interpretado de forma elástica,
tornando-se mais um deslize semântico do que um impasse jurídico.
Toffoli, Celso, Gilmar, Lewandowski e Marco Aurélio aceitam a leitura
dos advogados que lutam para esticar as autorizações para prisão de
condenados às calendas do “trânsito em julgado” (última sentença nas
quatro instâncias existentes na prática na barafunda jurisdicional
cabocla). Segundo o sofisma, “considerado culpado” significa “preso”.
Contra ela votam Cármen Lúcia, Fachin, Fux, Barroso e Alexandre. Rosa
concorda com os primeiros, mas, como os últimos, acha que jurisprudência
não é publicação periódica para durar tão pouco. Há, ainda, quem lembre
bem que “sentença penal condenatória” é dada após segundo grau, no qual
decisão colegiada já define a natureza factual do delito, interrompendo
a presunção da inocência e só restando ao condenado recursos de
natureza processual.
Fala-se muito na eventual libertação de Lula com a provável vitória dos “garantistas”. E agora, adiada sine die a
sessão marcada para 10 de abril, vem à tona mais uma prova de como os
infindáveis recursos prejudicam as garantias do cidadão. O Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) confirmou a vitória do cantor João
Gilberto sobre a Universal, que incorporou a EMI-Odeon, gravadora em que
este gravou seus três primeiros LPs. Em setembro de 2018, João acusou o
selo de ter esvaziado o patrimônio da EMI para não pagar o que lhe
devia. O músico, apontado como o mais importante intérprete da Bossa
Nova, vive em penúria e agora viu reconhecido seu direito à indenização
que cobra. Esse valor mais do que bastaria para sanear as finanças do
lançador de Desafinado. E o depósito dificilmente criaria qualquer dano ao patrimônio de uma empresa do porte da devedora.
No entanto, como lembrou no domingo 7 o colunista da Folha de S.Paulo Ruy
Castro, “ainda cabe recurso e João Gilberto, 87 anos, terá de se
transformar em Matusalém para ver os R$ 173 milhões que a Justiça
determinou a seu favor.” Como se sabe, a contagem de tempo no livro mais
lido de todas as eras não é igual à atual e a possibilidade de João
atingir os 969 anos atribuídos ao filho de Enoque, pai de Lamaleque e
avô de Noé é zero à esquerda, não os usados no título do texto de Ruy, Uma questão de zeros.
Esta, na certa, é a nota que merece nossa Justiça em aplicação da
igualdade de direitos entre um gênio da música brasileira e seu devedor.
*Jornalista, poeta e escritor
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