Flávio Costa
Do UOL, em São Paulo
- O bispo de Formosa (GO), José Ronaldo Ribeiro, foi afastado de suas funções pelo papa
Padres e funcionários da diocese só tinham um assunto a conversar: a investigação aberta pelo MP-GO (Ministério Público de Goiás) sobre um esquema de desvio anual de R$ 1 milhão dos fundos da igreja em favor das mais altas autoridades católicas da região.
Há pelo menos dois anos um grupo de fiéis denunciava, sistematicamente, a má gestão da diocese, cujo faturamento anual chegava a R$ 17 milhões. A quantia era o resultado da soma do que era arrecadado pelas 33 igrejas distribuídas por 20 paróquias: dízimo, doações, caixa de festas e pagamentos de taxas para realização de cerimônias como crisma, casamento e batismo. Em janeiro, esse grupo de católicos decidiu parar com as contribuições.
"O pessoal tava falando o seguinte: nós tamo com medo do bispo fugir, dele ir para Roma pra num ser preso (sic)", afirmou o técnico contábil da diocese, Darcivan da Conceição Serrana, em conversa com um padre, na tarde do último dia 7 de março.
Bispo foi preso por desviar dinheiro da igreja católica em Goiás
"No começo fiquei inseguro, pensando que tinha que acionar pessoas mais fortes. A finalidade [da investigação] é a de me eliminar. Depois vou querer uma retratação. O negócio não vai ficar barato", disse o bispo, de acordo com a transcrição das escutas telefônicas, a cujo conteúdo o UOL teve acesso exclusivo.
"O promotor vai se lascar", disse o interlocutor do bispo, identificado pelo prenome de Genivaldo.
O promotor em questão chama-se Douglas Chegury, responsável pela investigação que estava convocando todas as pessoas ligadas à diocese para prestarem depoimentos e, com ajuda de agentes da Polícia Civil, vigiava os passos do bispo.
Não haveria tempo de "fuga" para Roma. Nem a investigação se encerraria. Na segunda-feira (19), o bispo e mais 12 pessoas, entre elas cinco padres, foram presos durante a deflagração da Operação Caifás --nome do sacerdote que entregou Jesus Cristo a Pôncio Pilatos. A suspeita é que o grupo tenha cometido os crimes de associação criminosa, apropriação indébita, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro.
Dois dias depois, o papa Francisco afastou dom José Ronaldo Ribeiro de suas funções e nomeou um interventor para a diocese de Formosa.
Falsos relatórios contábeis
Com medo de ser preso, um dos funcionários da diocese resolveu contar o que sabia. Trata-se do mesmo Darcivan, que achava que o bispo fugiria para o Vaticano."Chegou no final do ano, quero fechar minha contabilidade, tem R$ 300 mil em caixa, eu não sei que dinheiro é esse, não sei onde está, não sei de onde veio. Eu faço uma carta aqui, botam eles para assinar falando que lá não tem o dinheiro, e baixo isso aqui na contabilidade", afirmou Darcivan, em depoimento ao MP-GO.
"Consta que Darcivan da Conceição, em declarações dele próprio aos promotores de Justiça, seria o contador da Cúria e conhece os problemas ligados à regularidade dessas finanças e, mesmo tendo a plena ciência de incoerências, aprovava essas contas anualmente", afirma o juiz da 2ª Vara Criminal de Formosa, Fernando Oliveira Samuel, em sua decisão que decreta a prisão temporária dos investigados.
"Não é meu", diz vigário-geral sobre dinheiro encontrado
O bispo recebe mensalmente cerca de R$ 3.339,00, a título de côngrua (pensão paga pela Igreja aos clérigos). O MP-GO afirma que os repasses superam a renda mensal de dom José Ronaldo. Somente com a arrecadação da cerimônia da crisma, ele teria embolsado R$ 100 mil, de acordo com a investigação.
Há pelo menos mais dois exemplos de desvio de dinheiro da diocese, realizado pelos padres e que foi camuflado por meio de documentos contábeis com informações falsas, de acordo com o MP goiano.
O padre da paróquia de Posse, Waldson José de Melo, assinou um documento que fez "desaparecer" a exata quantia de R$ 274.021,38.
"O representado Waldson forneceu uma declaração que tal dinheiro não existe mais e autorizava a baixa do valor para que as contas da igreja fossem ajustadas (de maneira aparentemente falsa)", afirma o juiz Samuel.
"A mesma forma de agir se deu em relação ao padre Moacyr Santana, cujo montante desviado e identificado pela contabilidade chegou a R$ 207.541,38, documento igualmente nos autos, devidamente assinado pelo representado Moacyr perante a contabilidade."
O padre Moacyr Santana é suspeito de ser sócio oculto de dois comerciantes, criados por ele como se fossem seus filhos, em uma fazenda de gado e uma casa lotérica também na cidade de Posse --distante 237km de Formosa. "Eu ajudei eles, mas com meu dinheiro da venda de meus bezerros", disse o padre Moacyr, em uma conversa telefônica com a irmã, um dia antes de ser preso.
Ao cumprirem um dos mandados de busca e apreensão, policiais civis encontraram R$ 95 mil escondidos sob o fundo falso do guarda-roupa do monsenhor Epitácio Cardozo Pereira, em sua casa na cidade de Planaltina (GO). Pereira, que está entre os presos, é vigário-geral de Formosa (GO), cargo que corresponde ao segundo na hierarquia da diocese. No total, a polícia apreendeu R$ 135 mil, considerando também os valores encontrados nas casas de outros investigados.
Juiz eclesiástico exigiu "apoio irrestrito ao bispo"
Chamado pelo próprio bispo José Ronaldo para analisar as contas da diocese de Formosa, o juiz eclesiástico Tiago Wenceslau de Barros Barbosa Júnior elaborou um documento falso sobre as contas da diocese, afirma o promotor de Justiça Douglas Chegury. Neste caso específico, a função do juiz eclesiástico corresponde ao padre responsável por analisar se as contas da diocese estavam regulares e os demais clérigos estavam seguindo as normas da Igreja Católica."Darcivan Serracena confessou que o padre Tiago fez questão de deixar claro que não queria nenhuma informação detalhada sobre a realidade das finanças da cúria diocesana de Formosa." Divulgado pela diocese com o objetivo de conter o escândalo, o "falso relatório contábil" contou com as assinaturas do bispo, do juiz eclesiástico e do advogado da diocese.
Em 2014, o padre Tiago Wenceslau excomungou um padre que celebrava casamento entre homossexuais.
No ano passado, o padre Tiago Wenceslau convocou uma reunião com todos os padres da diocese de Formosa, quando foi exigido a todos que manifestassem "apoio irrestrito ao bispo".
"Ficou claro para muitos o nítido teor intimidatório", afirma o juiz Samuel.
"Toda atuação do padre Tiago Wenceslau foi com o objetivo de obstruir as investigações e impedir que verdade fosse esclarecida. Ele agiu a pedido do bispo José Ronaldo", afirma o promotor Douglas Chegury.
No domingo (18), um dia antes de sua prisão, padre Tiago desembarcou em Brasília. "Essa segunda presença dele na região tinha o objetivo de continuar o trabalho de intimidação dos demais clérigos da diocese", diz Chegury.
"Não toco nos repasses financeiros", disse bispo
Quando vieram a público as denúncias dos fiéis, o bispo José Ronaldo Ribeiro negou que tivesse cometido irregularidades."Não tem nada de impropriedade. Não toco nos repasses financeiros das paróquias que são destinados à manutenção das necessidades da diocese, casa do clero, seminário, estrutura da cúria e funcionários, por exemplo", disse o bispo.
O advogado da diocese de Formosa, Edimundo da Silva Borges Júnior, afirmou na terça-feira (20) que não havia tido acesso aos autos do inquérito. Por essa razão, não comentou as suspeitas que recaem sobre a cúpula da diocese. O UOL voltou a telefonar, por pelo menos três vezes, para o advogado, mas ele não atendeu as ligações. Ele também figura entre os investigados da operação.
A reportagem também ligou para o escritório e para o celular do advogado Ulisses Borges de Resende, que atua na defesa do bispo José Ronaldo Ribeiro. Ele não atendeu as ligações.
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