Associação Nacional dos Procuradores da República critica comportamento do ministro e pede aos demais magistrados que o declarem suspeito para julgar Operação Ponto Final.
Por Alessandra Modzeleski e Fernanda Calgaro, G1, Brasília
Em uma carta aberta aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), a
Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) pediu aos
magistrados para "conter ação e comportamento" de Gilmar Mendes (leia a íntegra da carta ao final desta reportagem).
No documento, a ANPR afirma que o ministro "se destaca e destoa por
completo" do comportamento dos demais ministros da Corte e critica a
"desenvoltura" com que, segundo a associação, Gilmar Mendes se envolve
no debate de assuntos "fora dos autos".
O G1 buscava contato com o ministro até a última atualização desta reportagem.
Ao criticar o comportamento do ministro, a associação de procuradores
questiona a imparcialidade de Gilmar Mendes para atuar nos processos da
Operação Ponto Final, que envolve os empresários Jacob Barata e Lélis
Teixeira.
A entidade faz um apelo à Suprema Corte para que o pedido de suspeição de Gilmar, apresentado pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, seja aceito.
No documento, a ANPR ressalta que “apenas o Supremo pode conter, pode
corrigir, um ministro da própria Corte, quando seus atos e exemplos põem
em dúvida a credibilidade de todo o Tribunal e da Justiça”.
A suspeição de Gilmar Mendes foi levantada pela força-tarefa da
Operação Lava Jato no Rio de Janeiro por conta de ligações dele com réus
do caso.
O ministro foi padrinho de casamento da filha de Jacob Barata Filho.
Além disso, ele é um dos sócios da empresa Autoviação Metropolitana, que
tem, no quadro societário, uma empresa de Francisco Feitosa de
Albuquerque Lima, cunhado de Gilmar Mendes.
Relator da ação a que os empresários respondem no Supremo, Gilmar
Mendes foi responsável pela soltura deles duas vezes nas últimas
semanas. O ministro também mandou soltar outras pessoas investigadas no
caso.
"Já disse a Corte Europeia de Direitos Humanos que 'não basta que o
juiz atue imparcialmente, mas é preciso que exista a aparência de
imparcialidade; nessa matéria inclusive as aparências têm importância'.
Viola a aparência de imparcialidade da Suprema Corte brasileira a
postura do ministro que, de um lado, e no mesmo processo, lança ofensas e
sombras sobre agentes públicos, inclusive seus colegas, ataca decisões
judiciais de que discorda, e finda por julgar pai de apadrinhado e sócio
de cunhado", afirma a ANPR.
"Senhores ministros, apenas o Supremo pode corrigir o Supremo, e apenas
a Corte pode - e deve, permita-nos dizer - conter ação e comportamento
de ministro seu que põe em risco a imparcialidade. Um caso que seja em
que a Justiça não restaure sua inteira imparcialidade, põe em risco a
credibilidade de todo Poder Judiciário", complementam os procuradores.
Críticas
Na carta, a entidade também critica declarações de Gilmar contra
procuradores e o Ministério Público e diz que o ministro "parece ter
voltado a uma de suas predileções", que é a de "atacar de forma
desabrida e sem base instituições e a membros do Poder Judiciário e do
Ministério Público, do Procurador-Geral da República a Juízes e
Procuradores de todas as instâncias".
"Notas públicas diversas já foram divulgadas para desagravar as
constantes vítimas do tiroteio verbal - que comumente não parece ser
desprovido de intenções políticas - do ministro Gilmar Mendes", diz a
ANPR.
A associação criticou ainda as declarações públicas do ministro, que,
segundo a ANPR, causam "perplexidade ao país" e que fogem "do papel e do
cuidado que se espera de um juiz".
"Salta aos olhos que, em grau e assertividade, e em quantidade de
comentários, Sua Excelência se destaca e destoa por completo do
comportamento público de qualquer de seus pares".
Essa não é a primeira manifestação da entidade sobre a conduta do ministro. Recentemente, a ANPR divulgou nota contra "ataques em termos pessoais" de Gilmar contra Rodrigo Janot.
No comunicado, a entidade disse que o magistrado "ignora respeito que
tem de existir entre as instituições" e apontou um "furor mal contido"
do ministro, que classificou Janot como o "procurador-geral mais
desqualificado que já passou pela história da Procuradoria".
Íntegra
Leia a íntegra da carta divulgada pela ANPR:
CARTA ABERTA DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROCURADORES DA REPÚBLICA AOS MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Excelentíssimos Senhores Ministros,
Em
nossa língua pátria, "supremo" é o que está acima de todos os demais. É
o grau máximo. Em nossa Constituição, evidentemente não por acaso, a
Corte que Vossas Excelências compõem é a cúpula do Poder Judiciário. É a
responsável, portanto, por dizer por último e em definitivo o direito.
Seus componentes - Vossas Excelências - estão acima de corregedorias, e
respondem apenas a suas consciências. E assim tem de ser, em verdade,
posto nosso sistema jurídico.
Isto
traz, todavia, permitam-nos dizer, enorme responsabilidade, pois nos
atos, nas decisões, no comportamento e nos exemplos, Vossas Excelências
são e têm de ser fator de estabilidade. Vossas Excelências são, em larga
medida, a imagem e a pedra em que se assenta a justiça no País.
De
outra banda, o Tribunal - em sábia construção milenar da civilização - é
sempre um coletivo. Cada um de seus componentes diz o direito, mas é o
conjunto, a Corte, que o forma e configura, pela composição e debate de
opiniões. O erro é da natureza humana. Mas espera-se - e sem duvida
nenhuma logra-se - que o conjunto de mulheres e homens acerte mais,
aproxime-se mais da Justiça.
É
lugar comum, portanto - e seria incabível erro pretender argumentar
isso com o STF, que tantas vezes na história recente provou ter perfeita
consciência de seu papel fundamental no País; aqui vai o ponto apenas
porque necessário para a compreensão dos objetivos da carta - que a
instituição, o Tribunal, é maior do que qualquer de seus componentes.
Postas
estas premissas, instamos a que Vossas Excelências tomem o pedido
público que se segue como um ato de respeito, pois assim o é. É do
respeito ao Supremo Tribunal Federal e do respeito por cada um de seus
componentes que exsurge a constatação de que apenas o Supremo pode
conter, pode corrigir, um Ministro da própria Corte, quando seus atos e
exemplos põem em dúvida a credibilidade de todo o Tribunal e da Justiça.
Não se pretende aqui papel de censores de Membros do Supremo. Não
existem corregedores do Supremo. Há a própria Corte. Só o próprio
Tribunal pode exercer este papel.
Excelentíssimos
Ministros, não é de hoje que causa perplexidade ao País a desenvoltura
com que o Ministro Gilmar Mendes se envolve no debate público, dos mais
diversos temas, fora dos autos, fugindo, assim, do papel e do cuidado
que se espera de um Juiz, ainda que da Corte Suprema.
Salta
aos olhos que, em grau e assertividade, e em quantidade de comentários,
Sua Excelência se destaca e destoa por completo do comportamento
público de qualquer de seus pares. Magistrados outros, juízes e membros
do Ministério Público, de instâncias inferiores, já responderam a suas
corregedorias por declarações não raro bem menos assertivas do que as
expostas com habitualidade por Sua Excelência. Não existem corregedores
para os Membros do Supremo. Há apenas a própria Corte.
Mas
a Corte é a Justiça, e não se coaduna com qualquer silogismo razoável
propor que precisamente o Supremo e seus componentes estivessem
eventualmente acima das normas que regem todos os demais juízes.
Nos
últimos tempos Sua Excelência, o Ministro Gilmar Mendes, parece ter
voltado a uma de suas predileções - pode-se assim afirmar, tantas foram
às vezes que assim agiu -, qual seja, atacar de forma desabrida e sem
base instituições e a membros do Poder Judiciário e do Ministério
Público, do Procurador-Geral da República a Juízes e Procuradores de
todas as instâncias.
Notas
públicas diversas já foram divulgadas para desagravar as constantes
vítimas do tiroteio verbal - que comumente não parece ser desprovido de
intenções políticas - do Ministro Gilmar Mendes. Concentremo-nos, então,
na última leva de declarações rudes e injustas - atentatórias,
portanto, ao dever de urbanidade - de Sua Excelência, que acompanham sua
atuação como relator de Habeas Corpus de presos na Operação Ponto
Final, executada no Rio de Janeiro.
Relator
do Caso no Supremo, o Ministro Gilmar Mendes não só se dirigiu de forma
desrespeitosa ao Juiz Federal que atua no caso, afirmando que, "em
geral, é o cachorro que abana o rabo”, como lançou injustas ofensas aos
Procuradores da República que oficiam na Lava Jato do Rio de Janeiro, a
eles se referindo como “trêfegos e barulhentos”.
Na
mesma toada, insinuou que a a posição sumulada - e perfeitamente lógica
- de não conhecimento de recursos em habeas corpus quando ainda não
julgado o mérito pelas instâncias inferiores estaria sendo usada como
proteção para covardia de tomar decisões. Com esta última declaração Sua
Excelência conseguiu a proeza de lançar, de uma só vez, sombra de
dúvida sobre a dignidade de todas as instâncias inferiores e mesmo a
seus colegas de Tribunal, vale dizer, lançou-se em encontro à
credibilidade de todo o Poder Judiciário.
Estas
declarações trazem desde logo um grave desgaste ao STF e à Justiça
brasileira. Nestas críticas parece ter esquecido o Ministro o dever de
imparcialidade constante nos artigos 252 e 254 do Código de Processo
Penal bem como na Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8º), no
Pacto de Direitos Civis e Políticas e na Declaração Universal dos
Direitos do Homem.
Ademais, as declarações são absolutamente injustas.
Senhores
Ministros, em nome dos Procuradores da República de todo o Brasil
reforçamos aqui o apoio aos membros da Força-Tarefa da Operação Lava
Jato no Rio de Janeiro, que realizam um trabalho grandioso no combate à
corrupção naquele Estado, que notoriamente já foi muito vilipendiado por
violentos ataques aos cofres públicos.
O
trabalho da Força-Tarefa, que atua com elevada técnica, competência e
esmero, já revelou o grande esquema da atuação de organização criminosa
no Estado do Rio de Janeiro e continua obtendo resultados expressivos,
com recuperação, aos cofres públicos, de centenas de milhões de reais
desviados; bloqueio de outras centenas milhões em contas e bens
apreendidos; bem como condenações e prisões de agentes públicos e
particulares responsáveis pelo enorme prejuízo que esquema de corrupção,
peculato e lavagem de dinheiro que a criminalidade organizada estatal
causou às instituições e à população do Estado do Rio de Janeiro.
É
sempre importante lembrar que, muito do que foi comprovado pela
Força-Tarefa da Lava Jato no Rio de Janeiro é consequência da relação
promíscua e patrimonialista de agentes públicos e empresários, que
resultaram em enorme prejuízo aos cofres públicos e a demonstração de
que para as instituições sejam republicanas e imparciais é fundamental
que não se confundam relações pessoais com as coisas públicas.
Da
mesma forma, a Justiça Federal e o Juiz Federal que cuida do caso no
Rio de Janeiro têm sido exemplares em técnica, isenção, imparcialidade e
coragem, em trabalho observado e aplaudido por todo o Brasil.
Adjetivos
descabidos lançados às instituições é comportamento comum em excessos
cometidos por agentes políticos que confundem o público e o privado. Não
são esperados, contudo, de um Juiz.
Um
fato a mais, todavia, separa as declarações e atos do Ministro Gilmar
Mendes neste caso de outros em que se lançou a avaliações públicas não
cabíveis. Um conjunto sólido e público de circunstâncias indica
insofismavelmente a suspeição do Ministro para o caso, vale dizer, sua
atuação (insistente) na matéria retira credibilidade e põe em dúvida a
imparcialidade e a aparência de imparcialidade da Justiça.
Gilmar
Mendes foi padrinho de casamento (recente) da filha de um dos
beneficiados, com a liberdade por ele concedida. Confrontado com este
fato por si só sobejamente indicativo de proximidade e suspeição, por
meio de sua assessoria o Ministro Gilmar Mendes disse que “o casamento
não durou nem seis meses”, como se o vínculo de amizade com a família,
cuja prova cabal é o convite para apadrinhar o casamento, se dissolvesse
com o fim dele. A amizade - que determina a suspeição - foi a causa do
convite, e não o contrário.
Em
decorrência deste e de outros fatos - advogado em comum com o
investigado, sociedade e notórias relações comerciais do investigado com
um cunhado do Ministro, tudo isto coerente e indicativo de proximidade e
amizade - o Procurador-Geral da República, após representação no mesmo
sentido dos Procuradores da República que atuam no caso, apresentou
nesta semana pedidos de impedimento e de suspeição do Ministro Gilmar
Mendes ao STF.
Conforme
a arguição, há múltiplas causas que configuram impedimento, suspeição e
incompatibilidade do ministro para atuar no processo, considerando que
há entre eles vínculos pessoais que impedem o magistrado de exercer com a
mínima isenção de suas funções no processo.
Já
disse a Corte Europeia de Direitos Humanos que “não basta que o juiz
atue imparcialmente, mas é preciso que exista a aparência de
imparcialidade; nessa matéria inclusive as aparências têm importância.”
Viola
a aparência de imparcialidade da Suprema Corte brasileira a postura do
ministro que, de um lado, e no mesmo processo, lança ofensas e sombras
sobre agentes públicos, inclusive seus colegas, ataca decisões judiciais
de que discorda, e finda por julgar pai de apadrinhado e sócio de
cunhado.
Espera-se
o devido equilíbrio - e aparência de equilíbrio e de imparcialidade,
que são também essenciais - no comportamento de um Juiz, com a
responsabilidade de julgar de forma equidistante dos fatos e das pessoas
diretamente beneficiadas no caso. Da mesma forma é sempre o caminho
correto o devido respeito entre as instituições do Ministério Público e
do Poder Judiciário, e entre instâncias do próprio Poder Judiciário.
Senhores
Ministros, apenas o Supremo pode corrigir o Supremo, e apenas a Corte
pode - e deve, permita-nos dizer - conter ação e comportamento de
Ministro seu que põe em risco a imparcialidade. Um caso que seja em que a
Justiça não restaure sua inteira imparcialidade, põe em risco a
credibilidade de todo Poder Judiciário.
Não
é a primeira vez que é arguida a suspeição do Ministro Gilmar Mendes, e
mais uma vez Sua Excelência - ao menos por enquanto - recusa-se a
reconhecer ele mesmo a situação que é evidente a todos.
O
exemplo e o silêncio dos demais Ministros e da Corte não são mais
suficientes. Com a devida vênia, a responsabilidade para com o Poder
Judiciário impõe enfrentar o problema.
A
ação do Supremo no caso é essencial para que a imagem e a credibilidade
de todo o sistema judiciário brasileiro não saiam indelevelmente
abalados. A eventual inação, infelizmente, funcionará como omissão.
A ANPR representa mais de 1.300 Procuradoras e Procuradores da Republica, e confia, como sempre, no Supremo Tribunal Federal.
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROCURADORES DA REPÚBLICA - ANPR
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