quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Valentina de Botas: Os que dizem que não é preciso falar porque o povo sabe ignoram que o povo quer saber se eles sabem ou se está sozinho

Na boa entrevista de Aloysio Nunes Ferreira no Roda Viva da última segunda-feira, Augusto Nunes lhe perguntou por que Michel Temer não falou aos brasileiros a respeito do descalabro generalizado que constatara quando do afastamento de Dilma Rousseff. Uma paisagem aberrante das contas do Tesouro às rotinas administrativas miseravelmente ineficientes. “O povo sabe, Augusto, o novo governo prefere olhar pra frente”. Acho bom olhar para a frente, afinal é lá que o futuro nos espera. O diabo é que Cronos, pai desnaturado, continua a devorar os filhos; muitas vezes, pega-nos por trás o degenerado, enquanto estamos olhando para a frente em busca do futuro que acaba na bocarra do monstro e, antes de vivermos o tempo que nos cabe e o que nos cabe viver nele, devolve-nos ao tempo em que não existíamos.
Quando era perguntado a Aécio Neves, na campanha de 2014 à presidência, por que ele, assessores ou apoiadores não falavam dia e noite do que todos sabíamos – da roubalheira petista, das mentiras petistas, do abuso do Estado na campanha petista –, a resposta olhava para a frente, mas não enxergava a entrevista de Aloysio Nunes: “o povo sabe, vamos olhar para a frente”. Olhamos. Cronos veio e crau!, nos jogou para trás; em alguns índices socioeconômicos, o recuo foi de 30 anos; em termos de ideias e pensamento quanto à concepção de Estado, de sociedade e de modelo econômico, a coisa está ali entre o fim do século 19 e o meio do 20, com fixação patológica entre a Guerra Fria e a ditadura militar, temperada pelo fascismo avermelhado que se apropriou de bandeiras historicamente estranhas a ele, como a igualdade de gênero e de raça (claro que isso não vale para os judeus no antissemitismo menos ou mais protuberante nas ramificações locais do esquerdismo de senilidade repaginada), para revigorar o discurso caquético ancorado, agora, na defesa das ditas minorias e sempre desprezando a minoria mais minoritária: o indivíduo.
Esse é o ente que, em carne, osso e consciência própria, apavora essa desgraça porque pensa, enquanto rebanhos mansos ou enfurecidos denunciam a PM-do-Alckmin e silenciam quanto aos black boulos (a moça que perdeu um olho aparentemente num ato contra o governo Temer mereceu a solidariedade oportunista da ex-presidente e o jornalista Santiago Andrade, morto por um artefato lançado por black blocks que estão soltos, o silêncio oportunista dela). Por isso Marilena Chauí detesta a classe média, grupo caracterizado pela heterogeneidade ideológica – daí, de pouca permeabilidade ao doutrinamento –, pois composto de indivíduos de profissão, formação, interesses e origem diversos. O fascismo que a filósofa petista denuncia na classe média é historicamente inexistente nela, mas originário das classes operárias mais pobres e ignorantes manobradas. Fica chato falar isso num feriado, mas a história sem fraudes não vigora apenas em dias úteis. Johah Goldberg, num livro ótimo de 2010, “Fascismo de esquerda”, retoma a história desse ideário e mostra como a esquerda copula com ele.
Claro que essa velharia odiosa não é predominante na sociedade brasileira, ela só é muito mais barulhenta. Estridentes e minoritários, embora disseminados, seus defensores, representantes e comparsas – no lulopetismo, na imprensa, na academia dentro e fora das universidades, nas artes e literatura, nos movimentos sociais, na TV, na internet, nas reuniões de condomínio – falam até exaurirem quem ouve para ter a impressão de que existem. E vão se fazendo existir no discurso, na transfiguração da realidade em narrativas que a fraudam. Quando Aécio, Temer e Aloysio dizem que não é preciso falar por que o povo sabe, eles ignoram que o povo quer saber se eles sabem ou se está sozinho nessa porcaria toda. É incrível e exasperante que homens experientes e de boa-fé não se apercebam disso.
Os vermelhos pró-fora-temer-diretas-já passaram cinco noites tocando o terror no centro de São Paulo, causando prejuízos a pequenos comerciantes e provocando a PM-do-Alckmin; quando fizeram a manifestação pacífica na Paulista, ela acabou em vandalismo. As manifestações verde-amarelas-pró-impeachment rechaçaram o assédio dos cretinos pró-intervenção-militar e os black blocks nem sequer apareceram, pois sabiam que não seriam acolhidos. Agora, os vermelhos reclamam que a PM-do-Alckmin trata as manifestações vermelhas e as verde-amarelas de modos diferentes. Acontece que uma manifestação pacífica que acaba em vandalismo e uma manifestação pacífica que acaba pacificamente são diferentes. No entanto, quem vai ser monitorada (de que forma?) pelo Ministério Público Federal é o lado da lei.
Enquanto isso, o sindicalismo que rapinou os fundos de pensão organiza uma greve pró-fora-temer-diretas-já, segundo o próprio vigarista que a lidera, num evidente abuso do direito de greve; leis e direitos, para essa gente, só servem se a favor ou usados abusivamente. Enquanto isso também, o inexplicavelmente ainda solto governador Fernando Pimentel (PT-MG) paga com dinheiro do povo mineiro um evento pró-fora-temer-diretas-já. Imagine se o Alckmin, aquele da PM-do-Alckmin, fizesse um evento pró-temer em São Paulo com dinheiro dos impostos dos paulistas! E a mulher-honrada-que-não-tem-conta-na-suíça encheu quatro caminhões de mudança com pertences da Instituição da Presidência da República, numa ação classicamente conhecida como roubo, tecnicamente definida como patrimonialista e popularmente traduzida por falta de vergonha na cara.
Tudo naturalizado na metafísica eficaz segundo a qual há o discurso vigarista do bem, o vandalismo do bem, a rapina do bem, o esbulho institucional do bem e a pilhagem do bem. Um exemplo sutil porque o fenômeno também se alimenta de sutilezas: na Veja.com, a notícia não assinada sobre um delinquente ter jogado uma bomba num carro estacionado na garagem de uma casa no Alto de Pinheiros, ao final da manifestação vermelha de domingo, informa que o ataque se deu a 50 metros da “mansão de Michel Temer”. Se fosse a 50 metros da casa ou da residência de Michel Temer, a notícia não entregaria a mensagem pretendida. Não estou entre aqueles que acham que “a Veja se vendeu ao PT” logo agora que ele não tem como pagar, mas sei ler e, apesar de Leandro Karnal afirmar que todos os leitores da revista são “tapados e fascistas, sem exceção”, os comentários, quando acessei a notícia, eram todos de autodeclarados não leitores que execravam Temer por ter uma mansão e sequer mencionavam o carro destruído num ataque criminoso: fascismo do bem definido por quem fala.
Quando um político olha para a frente na busca pelo futuro, ele tem a obrigação de contemplar na sua perspectiva o presente e adjacências imediatamente anteriores ou o Brasil continuará se transformando numa espécie de parque temático de canalhices. Poderosamente entristecedor. O espantoso é a naturalização dessa paisagem de clareza solar, clareza esta a um só tempo consoladora e intrigante; tanto que o povo sabe, continua faltando que os políticos que combatem tal paisagem mostrem que também sabem. Antes que Cronos faça a próxima refeição. DO A.NUNES

Nenhum comentário:

Postar um comentário