Reconstituição dos bastidores da relação de ex-secretário do Tesouro com área técnica evidencia que governo estava consciente das irresponsabilidades e dos riscos. Silenciou o debate e seguiu em frente
Há
reportagens que evidenciam como o bom jornalismo é essencial à
democracia, à verdade, à transparência. Reportagem de Leandra Peres no
jornal “Valor Econômico”, sobre as pedaladas fiscais demole, sem chance
para reconstrução, as justificativas esfarrapadas do governo. Leandra
não escreveu com o intuito de demolir nada. Escreveu para contar o que
aconteceu. E o que aconteceu está em desacordo com a versão oficial — o
que evidencia, e isto digo eu, os crimes de responsabilidade cometidos
por Dilma.
Destaco trechos da reportagem do Valor, que evidencia o passo a passo de um desastre, produzido de maneira consciente e determinada.
A
reportagem do Valor reproduz os interiores do governo Dilma, com a sua
rotina de tacanhice ideológica, arrogância, intimidação e até assédio
moral — sem contar o desprezo matemática.
O AVISO
Dois anos e meio antes de as “pedaladas fiscais” justificarem a abertura do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff e pelo menos um ano antes do início da campanha pela reeleição, técnicos do Tesouro Nacional elaboraram, em julho de 2013, um diagnóstico de 97 páginas sobre a situação fiscal e econômica do país. Mantido sob sigilo até agora, o relatório, ao qual o Valor teve acesso, continha um claro alerta à cúpula do governo: “O prazo para um possível ‘downgrade’ é de até 2 anos”; “Ao final de 2015 o TN [Tesouro Nacional] estaria com um passivo de R$ 41 bilhões” na conta dos subsídios em atraso; “Contabilidade ‘criativa’ afeta a credibilidade da política fiscal”.
Dois anos e meio antes de as “pedaladas fiscais” justificarem a abertura do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff e pelo menos um ano antes do início da campanha pela reeleição, técnicos do Tesouro Nacional elaboraram, em julho de 2013, um diagnóstico de 97 páginas sobre a situação fiscal e econômica do país. Mantido sob sigilo até agora, o relatório, ao qual o Valor teve acesso, continha um claro alerta à cúpula do governo: “O prazo para um possível ‘downgrade’ é de até 2 anos”; “Ao final de 2015 o TN [Tesouro Nacional] estaria com um passivo de R$ 41 bilhões” na conta dos subsídios em atraso; “Contabilidade ‘criativa’ afeta a credibilidade da política fiscal”.
Novos
avisos foram incluídos em uma versão revisada, de setembro de 2013. O
caixa do Tesouro estava muito baixo e foi citado no documento como
“risco para 2014”. Os técnicos do Tesouro projetavam um “déficit sem
perspectiva de redução”, falavam em “esqueletos” que teriam que ser
explicitados e recomendavam “interromper imediatamente quaisquer
operações que produzam resultado primário sem a contrapartida de
contração da demanda agregada ou que gere efeitos negativos sobre o
resultado nominal e/ou taxa implícita da dívida
O trabalho
foi concluído em novembro de 2013 e apresentado ao então secretário do
Tesouro, Arno Augustin. As 97 páginas do documento original foram
resumidas em 16 slides.
(…)
Nos últimos três meses o Valor conversou com mais de 20 autoridades que ocuparam ou ainda ocupam cargos no governo e teve acesso exclusivo a documentos inéditos que permitem recontar a história fiscal do primeiro mandato da presidente Dilma.
(…)
Nos últimos três meses o Valor conversou com mais de 20 autoridades que ocuparam ou ainda ocupam cargos no governo e teve acesso exclusivo a documentos inéditos que permitem recontar a história fiscal do primeiro mandato da presidente Dilma.
O que é
possível mostrar agora é que em momentos-chave, como o da adoção da
contabilidade criativa de 2012, o esforço da área técnica do Tesouro
para barrar novas operações em 2013 e a construção da fábrica de
pedaladas de 2014, não faltaram avisos sobre os riscos que o país
corria.
Os pitos
O encontro de Arno com os 19 coordenadores-gerais do Tesouro, os seis subsecretários e seus assessores mais próximos para discutir o documento elaborado pelos técnicos com os avisos ao governo é um dos momentos mais tensos dessa história.
O encontro de Arno com os 19 coordenadores-gerais do Tesouro, os seis subsecretários e seus assessores mais próximos para discutir o documento elaborado pelos técnicos com os avisos ao governo é um dos momentos mais tensos dessa história.
A reunião
foi marcada para a tarde de 22 de novembro de 2013, na sala do Conselho
Monetário Nacional (CMN), que fica no sexto andar do prédio do
Ministério da Fazenda. O clima era pesado e ninguém se lembra de haver
cafezinho ou de ter bebido água durante a reunião, dois ingredientes que
raramente faltam nas reuniões da burocracia em Brasília.
A pauta do
encontro tinha cinco itens. O primeiro “ponto de preocupação” era “o
risco de ‘downgrade’ e seus impactos”. Os seguintes, a política fiscal e
suas consequências; a imagem do Tesouro; e o aperfeiçoamento de
processos internos. Por último, o “relacionamento interpessoal”, uma
forma educada de se referir às explosões pelas quais o secretário Arno
Augustin era evitado por sua equipe.
(…)
Os sinais de que a estratégia não estava dando certo já eram visíveis. O Banco Central (BC) fora forçado a retomar os aumentos da Selic em abril para combater uma inflação que caminhava para o teto da meta, apesar do represamento das tarifas públicas. A receita do Tesouro ainda crescia 13,3% entre janeiro e novembro de 2013, mas as despesas voavam ainda mais altas, com crescimento de 14,1%, e o quadro fiscal já se anunciava mais sombrio porque o governo havia desonerado R$ 70,4 bilhões em impostos a preços da época. No front externo, o banco central dos EUA começara a retirar os estímulos monetários que vinha injetando na economia americana, o que prometia reduzir a abundância de capitais para países emergentes como o Brasil.
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Os sinais de que a estratégia não estava dando certo já eram visíveis. O Banco Central (BC) fora forçado a retomar os aumentos da Selic em abril para combater uma inflação que caminhava para o teto da meta, apesar do represamento das tarifas públicas. A receita do Tesouro ainda crescia 13,3% entre janeiro e novembro de 2013, mas as despesas voavam ainda mais altas, com crescimento de 14,1%, e o quadro fiscal já se anunciava mais sombrio porque o governo havia desonerado R$ 70,4 bilhões em impostos a preços da época. No front externo, o banco central dos EUA começara a retirar os estímulos monetários que vinha injetando na economia americana, o que prometia reduzir a abundância de capitais para países emergentes como o Brasil.
Escolhido
por ser uma voz moderada dentro do corpo técnico do Tesouro, o então
coordenador-geral de Planejamento Estratégico da Dívida Pública, Otávio
Ladeira, abriu a reunião com Arno. Coube a ele o alerta de que a
política fiscal já entrava numa trajetória insustentável.
Quando foi
apresentado o sexto slide com um gráfico que mostrava como o mercado
vinha perdendo a referência de qual era a meta fiscal perseguida pelo
governo, Arno deixou claro que havia convocado a reunião para pôr fim ao
que considerava uma rebelião contra a política econômica e não para
tratar de cenários fiscais. Enquanto Ladeira expunha a dificuldade de o
governo atingir a meta de superávit primário de 2,3% do PIB em 2013, o
secretário interrompeu: “Quem disse que não vamos cumprir a meta? O
mercado pode projetar qualquer coisa. Eles fazem isso o tempo todo para
ganhar dinheiro”, disse.
(…)
A versão do chefe(…)
Depois dos funcionários, foi a vez de Arno fazer uma apresentação. Sua tese era que a política fiscal era fundamental para garantir o crescimento econômico e não levaria o governo à bancarrota, como queriam fazer crer os técnicos do Tesouro.
(…)
Como das outras vezes em que fora alertado sobre riscos fiscais, o secretário lembrou que a política econômica é definida por quem tem votos e, ali, naquela sala, nenhum dos técnicos havia sido eleito. Quando a reunião vazou para a imprensa, Arno chamou os subsecretários a seu gabinete e, ignorando a promessa de domar o gênio, quis saber quem era o autor do vazamento. Ameaçou abrir processos disciplinares contra todos que “ficaram aí circulando essa apresentação”.
(…)
Quem decide
O processo decisório do governo Dilma, e aí não apenas da política fiscal, foi marcado pela aversão ao dissenso. Ministros e servidores que participaram de decisões importantes descrevem reuniões longas, como 30 ou 40 participantes, em que questionamentos técnicos eram considerados afrontas ao projeto do governo e davam margem a broncas, em vez de discussões.
“Na
primeira reunião para discutir qualquer assunto importante, várias
pessoas falavam. Na segunda, menos gente. Da terceira em diante, a
impressão era que não adiantava nada fazer ponderações. E aí quem
discordava preferia ficar calado e deixar a presidente decidir”, conta
um ex-ministro. “É um governo de muitas certezas e quase nenhuma
dúvida”, complementa outra autoridade do alto escalão.
(…)
(…)
A loucura
No primeiro ano do mandato da presidente, durante as discussões para a privatização dos aeroportos de Guarulhos, Viracopos (Campinas) e Natal, essa dinâmica ficou clara. A definição da taxa de crescimento do PIB que embasaria os cenários econômicos da concessão se transformou em um embate ideológico entre a ala desenvolvimentista radical — representada pelo secretário do Tesouro e a então ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann — e o resto do governo. Procurada pelo Valor, a ex-ministra não retornou às ligações.
No primeiro ano do mandato da presidente, durante as discussões para a privatização dos aeroportos de Guarulhos, Viracopos (Campinas) e Natal, essa dinâmica ficou clara. A definição da taxa de crescimento do PIB que embasaria os cenários econômicos da concessão se transformou em um embate ideológico entre a ala desenvolvimentista radical — representada pelo secretário do Tesouro e a então ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann — e o resto do governo. Procurada pelo Valor, a ex-ministra não retornou às ligações.
(…)
A presidente Dilma arbitrou pessoalmente a disputa e a média do PIB usada nesses primeiros projetos é de 3,7% ao ano, com picos de crescimento de 5,5% em 2014 e de 4,41% em 2015.
A presidente Dilma arbitrou pessoalmente a disputa e a média do PIB usada nesses primeiros projetos é de 3,7% ao ano, com picos de crescimento de 5,5% em 2014 e de 4,41% em 2015.
Pão de queijo
O preço do pão de queijo nos aeroportos também foi intensamente discutido. O problema, conforme descrição da ministra Gleisi, era que a alimentação, muito cara, não podia ser um empecilho às viagens dos eleitores da classe C que haviam passado a frequentar os aeroportos. A solução foi uma licitação em que as lanchonetes pagam aluguel abaixo do preço de mercado e oferecem um cardápio com 15 itens a preços mais baixos. Em Congonhas, o pão de queijo custava R$ 2,50 na tabela subsidiada de fins de outubro e R$ 5,00 nos demais estabelecimentos.
O preço do pão de queijo nos aeroportos também foi intensamente discutido. O problema, conforme descrição da ministra Gleisi, era que a alimentação, muito cara, não podia ser um empecilho às viagens dos eleitores da classe C que haviam passado a frequentar os aeroportos. A solução foi uma licitação em que as lanchonetes pagam aluguel abaixo do preço de mercado e oferecem um cardápio com 15 itens a preços mais baixos. Em Congonhas, o pão de queijo custava R$ 2,50 na tabela subsidiada de fins de outubro e R$ 5,00 nos demais estabelecimentos.
Voz da chefa
Arno passou, então, a ser visto pelos colegas de governo como a voz da chefe nas discussões internas. Ele sempre tratou a presidente Dilma como ela gosta de ser chamada, por “presidenta”. Integrantes do governo, no entanto, descrevem cenas pitorescas que mostram a proximidade dos dois. Em uma delas, o ex-secretário do Tesouro teve que se ausentar da sala de reunião para cumprir uma ordem de Dilma: “Arno, seu cabelo está desarrumado, vá lá arrumar”.
(…)
A característica mais marcante do ex-secretário é seu senso de missão. Nas entrevistas feitas pelo Valor para
esta reportagem, Arno foi comumente descrito como “um homem de
partido”, “um soldado”, “um cumpridor de tarefas”. “A presidente decidia
e ele entregava”, descreve uma autoridade que trabalhou com os dois.Arno passou, então, a ser visto pelos colegas de governo como a voz da chefe nas discussões internas. Ele sempre tratou a presidente Dilma como ela gosta de ser chamada, por “presidenta”. Integrantes do governo, no entanto, descrevem cenas pitorescas que mostram a proximidade dos dois. Em uma delas, o ex-secretário do Tesouro teve que se ausentar da sala de reunião para cumprir uma ordem de Dilma: “Arno, seu cabelo está desarrumado, vá lá arrumar”.
(…)
Essa
determinação ficava ainda mais visível nas ocasiões em que, derrotado,
não hesitou em implementar o que foi deliberado. No primeiro semestre de
2013, por exemplo, quando o governo discutia o lançamento do Minha Casa
Melhor, criado para subsidiar a compra de móveis e eletrodomésticos por
beneficiários do Minha Casa, Minha Vida, Arno dizia, entre jocoso e
crítico, que a mesa listada entre os bens que podiam ser adquiridos no
programa era mais cara do que a que ele tinha em seu apartamento. Ao
corpo técnico do Tesouro repetia que “o cara não consegue pagar nem a
casa, como vai pagar os móveis?”
Mas depois
que a presidente bateu o martelo, Arno encontrou forma de financiar os
eletrodomésticos sem tirar dinheiro à vista do caixa do Tesouro e sem
impacto nas estatísticas de resultado primário: o Tesouro fez um
empréstimo de R$ 8 bilhões à Caixa, responsável pelo programa, dos quais
R$ 3 bilhões foram separados para cobrir a inadimplência do Minha Casa
Melhor.
Não era
apenas a fidelidade à presidente e o respeito à hierarquia que definiam
as ações do ex-secretário. Colegas de Arno no governo dizem que havia
uma proximidade ideológica entre os dois.
(…)
Segundo depoimento ao Valor, o ex-secretário tratava as agências de rating como um instrumento “usado pelos países ricos para impedir políticas de desenvolvimento” de países pobres. A participação de 49% da estatal Infraero nos aeroportos privatizados foi definida pela necessidade de “o governo participar do dia a dia da empresa” porque o governo considerava as agências reguladoras instrumentos ineficazes de supervisão. Como define um ex-ministro: “A presidente achou no Arno alguém que pensa como ela”.
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Segundo depoimento ao Valor, o ex-secretário tratava as agências de rating como um instrumento “usado pelos países ricos para impedir políticas de desenvolvimento” de países pobres. A participação de 49% da estatal Infraero nos aeroportos privatizados foi definida pela necessidade de “o governo participar do dia a dia da empresa” porque o governo considerava as agências reguladoras instrumentos ineficazes de supervisão. Como define um ex-ministro: “A presidente achou no Arno alguém que pensa como ela”.
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