Oficialmente,
o movimento militar que derrubou João Goulart faz hoje 50 anos — o
assunto, como sabem, está em todo canto. A quartelada, com amplo apoio
civil, se consumou, de verdade, no dia 1º de abril, mas se quis evitar a
coincidência com o chamado Dia da Mentira. Hoje, com a tal Comissão da
Verdade federal em funcionamento — e algumas outras estaduais ou até
corporativas (em universidades, por exemplo) —, prospera a farsa sobre
aqueles tempos. A extrema esquerda armada perdeu a batalha porque era
minoritária e porque não dispunha de força bélica para enfrentar os
militares. Os extremistas, no entanto, venceram a guerra de propaganda,
desta feita sem precisar dar um tiro: seus epígonos, isto é, seus
seguidores intelectuais, ocuparam a imprensa, o meio universitário, os
centros culturais, as escolas, fatias importantes do Executivo, do
Legislativo e do Judiciário para inventar o confronto que nunca existiu.
E qual é o
confronto que nunca existiu? Aquele que oporia, de um lado, os
defensores da liberdade e, de outro, os que a recusavam. Se, durante o
regime militar, vivemos sob a mentira de que o golpe foi desfechado para
defender a democracia, hoje, 50 anos depois, vive-se a outra face do
engodo, que, no caso, é igualmente trapaceira, mas com o sinal trocado.
Comecemos do óbvio: em 1964, João Goulart e os que com ele se alinharam
não tinham a democracia como um valor universal e inegociável; tampouco
era essa a convicção dos militares e dos organismos civis que lhes deram
apoio. O regime de liberdades individuais e públicas morreu de
inanição; morreu porque faltou quem estivesse disposto a alimentá-lo. Ao
contrário: assistiu-se a uma espécie de corrida rumo ao golpe.
Golpista, na prática — e escandalosamente incompetente —, era Jango.
Golpistas eram aqueles que o depuseram. Ainda que pudesse haver
bem-intencionados em ambos os lados, não foram esses a ditar o rumo dos
acontecimentos.
Outras
farsas influentes se combinam para fabricar um confronto entre vítimas e
algozes que é não menos trapaceiro. Não é verdade, por exemplo, que os
atentados terroristas e a luta armada tiveram início depois da
decretação do famigerado AI-5, o Ato Institucional que implementou a
ditadura de fato no país. Ao contrário até: a muita gente essa medida de
força, que deu ao estado poderes absolutos, pareceu até razoável porque
a extrema esquerda decidiu intensificar a rotina de ataques
terroristas. O AI-5 só foi decretado no dia 13 de dezembro de 1968. A
VPR, a Vanguarda Popular Revolucionária, explodiu uma bomba no Consulado
Americano, no Conjunto Nacional, em São Paulo, no dia 19 de março
daquele ano. Em abril, novas explosões no Estadão e na Bolsa de Valores
de São Paulo. Essas são apenas algumas de uma sequência. No dia 18 de
julho, o presidente Costa e Silva ainda recebeu uma comissão de
estudantes para negociar. Inútil.
O que
pretendiam os movimentos de extrema-esquerda? É certo que queriam
derrotar o regime militar inaugurado em 1964; mas que fique claro: o seu
horizonte não era a democracia. Ao contrário. Como costumo lembrar, não
há um só texto produzido pelas esquerdas então que defendessem esse
regime. Ao contrário: a convicção dos grupos armados era que os
fundamentos da democracia eram apenas um engodo para impedir a
libertação do povo. Os extremistas de esquerda também queriam uma
ditadura — no caso, comunista.
Cumpre
indagar e responder: o regime democrático que temos hoje é um
caudatário, um devedor, dos extremistas que recorreram à guerrilha e ao
terrorismo? A resposta mais clara, óbvia e evidente é “Não”! Devemos a
democracia aos que organizaram a luta pacífica contra a ditadura
militar. Qual foi a contribuição da Ação Libertadora Nacional, a ALN, do
terrorista Carlos Marighella, à civilidade política? Nenhuma! A eles
devemos sequestros e cadáveres. Qual foi a contribuição da VPR, a
Vanguarda Popular Revolucionária, do terrorista Carlos Lamarca, à
tolerância política? Nenhuma! A eles devemos violência e mortes. Qual
foi a contribuição da terrorista VAR-Palmares, de Dilma Rousseff, à
pluralidade política? Nenhuma. A eles devemos assaltos, bombas e
sequestros.
Mas
devemos, sim, a democracia a Paulo Brossard, a Marcos Freire, a Itamar
Franco, a Franco Montoro, a Fernando Henrique Cardoso, a Mário Covas, a
José Serra, a Alencar Furtado, entre outros. Devemos a democracia até a
ex-servidores do regime que resolveram dissentir, como Severo Gomes e
Teotônio Vilela. Outros ainda, dentro do aparelho de estado, tiveram
papel relevante para trincar o bloco hegemônico que comandava o país,
como Petrônio Portella, Aureliano Chaves e Marco Maciel.
História
O ambiente está viciado. Mistificadores e prosélitos, mais ocupados com a guerra ideológica do que com a realidade, atropelam os fatos. Pretendem inventar uma narrativa que justifique tanto as ações doidivanas do passado como certas safadezas do presente (ainda voltarei a este ponto). O que fazer? Se você não quer se deixar levar pela mera discurseira inconsequente, sugiro que leia este livro.
O ambiente está viciado. Mistificadores e prosélitos, mais ocupados com a guerra ideológica do que com a realidade, atropelam os fatos. Pretendem inventar uma narrativa que justifique tanto as ações doidivanas do passado como certas safadezas do presente (ainda voltarei a este ponto). O que fazer? Se você não quer se deixar levar pela mera discurseira inconsequente, sugiro que leia este livro.
O
historiador Marco Antonio Villa escreveu “Ditadura à Brasileira” (LeYa),
que tem um emblemático subtítulo: “1964-1985: A democracia golpeada à
esquerda e à direita”. Villa vai ao ponto. Cada ano do período constitui
um capítulo do livro e evidencia a escalada da radicalização, num
confronto em que quase ninguém podia reivindicar o papel do mocinho. Não
se trata de “uma outra leitura do golpe”, favorável ao movimento. O que
Villa faz, com rigor e competência, é alinhavar, de maneira seca,
objetiva, a sequência de eventos, com os seus devidos protagonistas, que
levaram à deposição de João Goulart, à instauração da ditadura, à
abertura do regime e, finalmente, à democracia.
É claro
que o autor tem um ponto de vista — e, no caso, é um ponto de vista que
protege o leitor: Villa é um democrata, e isso faz com que veja com
olhos críticos — e, pois, independentes — as várias agressões havidas no
período aos valores da democracia , tanto à direita como à esquerda. No
seu livro não há bandidos e heróis. Há pessoas de carne e osso fazendo
coisas: muitas em favor da civilidade política; boa parte delas, em
favor da barbárie. O volume traz uma útil cronologia, bibliografia e
índices onomástico e remissivo, o que o torna também um bom manual de
consulta. É um bom instrumento para se defender de fraudes influentes.
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Nada devemos, rigorosamente nada!, às esquerdas armadas. A coragem é, em si, um valor. Quanto ela é tão suicida como homicida, já não é coragem, mas estupidez, e costuma arrastar outros tantos em sua aventura.
Nada devemos, rigorosamente nada!, às esquerdas armadas. A coragem é, em si, um valor. Quanto ela é tão suicida como homicida, já não é coragem, mas estupidez, e costuma arrastar outros tantos em sua aventura.