quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Editorial da Folha faz, na prática, a defesa da impunidade para os criminosos do colarinho branco, incluindo os mensaleiros

A pressão da quadrilha do mensalão contra o Poder Judiciário começa a fazer frutos. Dia sim, dia também, condenados pela Justiça estão nos jornais difamando o STF, acusando-o de ter promovido um julgamento de exceção, apontando uma suposta mudança de jurisprudência nesse julgamento. Tudo absolutamente falso! A Folha faz hoje um editorial de suposto alcance geral, mas que, como diriam os ministros do Supremo, atendem ao “caso em espécie”: os interesses dos condenados do mensalão, que não querem, claro!, ir para a cadeia. Segundo o jornal, “penas de prisão deveriam, em tese, caber a criminosos violentos; para os demais, como no mensalão, conviriam severas penas alternativas”. Trata-se de uma aposta na impunidade que traz, também, uma marca de classe. Vamos lá. O editorial segue em vermelho. Comento em azul.
Para quem precisa
O título faz eco a uma música dos “Titãs”: “cadeia para quem precisa”. Não vou entrar no mérito das circunstâncias em que aquela canção veio a público. Noto apenas que é comum e humano que as pessoas que estejam enfrentando problemas com a lei acreditem que merecedores de punição sejam sempre os outros. Adiante.
Os crimes são cometidos mediante violência ou fraude. No primeiro caso, só resta à sociedade prender os infratores — são perigosos demais para continuar à solta. Será adequado tratar todos os demais do mesmo modo?
As primeiras linhas, que se pretendem neutras, como quem rememorasse o óbvio, já trazem, no entanto, uma escolha que requereria explicação: classifica de “perigosos demais” os criminosos que recorrem à violência, o que nos leva a pensar que os demais — os do colarinho branco, por exemplo — “perigosos” não são. Sendo assim, tem-se de saída que os crimes contra a ordem financeira, contra a gestão do estado, contra o patrimônio público e afins jamais devem levar seus autores para a cadeia. Os corruptos, no geral, são pessoas dóceis. Alguns podem até se dedicar à benemerência.
Esta Folha tem argumentado que não. Há mais de dez anos, portanto muito antes do mensalão, sustenta-se aqui que a pena de prisão deveria ser destinada, em tese, aos que recorrem a violência física ou grave ameaça na consecução do delito de que são culpados.
O fato de a Folha defender isso “há mais de dez anos” só nos diz que um equívoco pode durar mais de dez anos. Corruptos e corruptores, em regra, não recorrem a ameaças físicas. As “graves ameaças” que representam costumam dizer respeito à organização do estado. Segundo o modelo defendido pelo jornal, um Bernard Madoff estaria por aí (ou por lá…), solto, cumprindo alguma pena alternativa, podendo gozar, no dia a dia — e quem haveria de impedi-lo? — dos benefícios que hauriu de suas ações ilegais. Madoff ameaçava alguém, além do sistema financeiro americano?
As condições na maioria das cadeias brasileiras são abjetas. Mas a sociedade continua a abarrotá-las de indivíduos, condenados por juízes que fecham os olhos, como a efígie da Justiça, para a norma constitucional que proíbe “penas cruéis” e “tratamento degradante”.
Trata-se de um dos parágrafos mais infelizes, creio, jamais impressos nesse jornal. As condições das cadeias são, realmente, abjetas, com raras exceções. Trata-se de um argumento descabido porque nada tem a ver com o mérito. Não, Folha! Os juízes “não fecham os olhos”. É que eles não podem deixar de cumprir a lei. O editorial, afinal, defende a mudança do ordenamento jurídico vigente a respeito ou incita os magistrados a ignorá-lo? No que diz respeito à retórica, o editorial espanca tolamente a “efígie da Justiça”. Ela tem os olhos vendados, senhor editorialista, justamente para ser “justa”, para ser equilibrada, para não distinguir os que usam colarinho branco dos que usam macacão — para apelar a contrastes ora em voga no Brasil.
O editorial da Folha, infelizmente, defende uma Justiça sem venda, de olhos abertos, capaz, então, de discriminar quem será e quem não será punido independentemente do merecimento.
A Folha não deve ignorar, e certamente não ignora, que certos crimes são mais afeitos a determinados setores da sociedade. Há, como negar?, um traço de classe em algumas transgressões, não é? Os crimes violentos, que têm, sim!, de ser severamente punidos, costumam ser praticados — basta fazer uma pesquisa básica — por aqueles que não foram especialmente beneficiados pela sorte. Há exceções, mas é preciso olhar a regra. Já os crimes contra a ordem financeira e a gestão do estado, como a corrupção e a malversação do dinheiro público, são quase monopólio daqueles que viveram sem temor nem perigo.
A origem social tem forte influência NÃO NA DECISÃO DE DELINQUIR, MAS NO TIPO DE DELINQUÊNCIA. Um Fernandinho Beira-Mar, por sua origem, dificilmente, ocuparia o lugar de um Marcos Valério. Um Marcos Valério dificilmente se dedicaria ao ramo de Fernandinho Beira-Mar. Segundo a Folha, o primeiro representa um risco maior  para a sociedade do que o outro. Bem, eu não acho!
Eu estou entre aqueles que defendem que os dois devam ir para a cadeia — para boas cadeias, claro! E reitero que a corrupção generalizada responde por mais mortos do que os chefes dos morros. Matam crianças de fome, matam pobres por falta de assistência médica; soterram desvalidos, como se viu recentemente na região serrana do Rio.
São mais de 514 mil presos no país, num sistema que comporta 306 mil. Ao mesmo tempo, 153 mil mandados de prisão aguardam ser cumpridos, conforme o eufemismo judicial. Celerados estão livres, enquanto uma parcela de criminosos que não oferece o mesmo risco está detida.
Há falhas lógicas clamorosas nessa numeralha. Se a Folha considera que, entre os 514 mil presos, há os que não deveriam estar na cadeia, deve, da mesma sorte, considerar que, entre os 153 mil mandados não-cumpridos, também há ordens de prisão descabidas. Fiz-me entender ou requer desenho? Logo, havendo presos demais, seguindo o jornal, também há ordens de prisão demais, segundo o mesmo jornal, de sorte que o número a ser cumprido, seguindo a lógica do articulista, seria menos relevante do que parece.
Juízo meramente comparativo não é juízo de mérito. Haver celerados soltos — e certamente os há — não muda a razão por que outros menos perigosos estão presos. Ou por outra: a periculosidade de quem está solto não muda a natureza do crime de quem está preso. O fato de o assassino de 10 pessoas estar solto torna menos justa a prisão de quem matou um homem? Estar esse mesmo assassino na rua torna especialmente absurda a eventual prisão de quem assaltou os cofres públicos?
Dizer que a prisão deveria reeducar é outra falácia. Claro que é preciso aumentar o número de vagas nos presídios, torná-los compatíveis com um país civilizado e compelir os detentos a trabalhar. Mesmo na Suécia, porém, os cárceres fazem jus ao clichê de que toda prisão é uma universidade do crime.
O sentido do parágrafo é um só: as prisões são inúteis. Inúteis para quem? É bem possível que as cadeias realmente não recuperem ninguém. Mas espere aí, senhor editorialista: isso não vale também para os crimes de sangue, para os criminosos violentos? Não se prende um criminoso apenas para recuperá-lo. Há, sim, e tem de haver, o aspecto punitivo.
De resto, o texto acena para outra possibilidade perigosa. Se merece cadeia apenas aquele que ameaça a sociedade com ações violentas, que tratamento dar aos crimes passionais? O amante que mata o objeto de seu desejo (ou de seu ódio) porque traído ou algo assim deve ficar solto? Não raro, o que diz matar por amor não é um homicida compulsivo ou profissional. Dificilmente voltaria a delinquir. O marido que espanca reiteradamente a mulher não representa exatamente risco para a sociedade. No editorial da Folha, não cabe nem a Lei Maria da Penha.
Constatá-lo não implica complacência. Delinquentes violentos devem ser submetidos a longuíssima privação de liberdade, e a progressão dessas penas deveria ser até mais difícil do que é.
Na prática, o texto defende a exacerbação da punição para os que não têm colarinho branco e complacência, sim, para os que têm.
Quanto aos outros, não faltam medidas duras à disposição do juiz: impedimento duradouro de exercer cargo público ou determinada profissão, restituição dos valores subtraídos e prestação de serviços à comunidade, que podem se tornar encargos severos quando prolongados -e são verificáveis pelos recursos da tecnologia eletrônica.
Assaltantes dos cofres públicos, quando flagrados, no mais das vezes, já lavaram seus bens, já os colocaram em nome de terceiros, já enviaram dinheiro para contas secretas no exterior etc. Ainda que fossem condenados a dar sopão para pobres durante 10 anos, eles o fariam com a maior satisfação. Transfiramos Madoff para o Brasil e apliquemos os princípios da Folha… Nós lhe daríamos a chance de terminar os seus dias no conforto — ainda que tivesse todos os seus bens visíveis sequestrados — e ainda como um homem bom! Ele teria a chance de descobrir a graça de ser um homem generoso!
A indignação pública perante o escândalo do mensalão se expressa, contudo, no legítimo anseio de ver os culpados atrás das grades.
Não entendi. O anseio da população é legitimo, mas ignorante, é isso? Mandar mensaleiros para a cadeia é agora sentimento grosseiro dos bárbaros!
Sempre houve corrupção política, mas o governo Lula a praticou em escala sistêmica, sob o comando da camarilha então incrustada no ápice do Executivo e do partido que o controla. As punições hão de ser drásticas, e seu efeito, exemplar, mas sem a predisposição vingadora que parece governar certas decisões (e equívocos) do ministro Joaquim Barbosa.
A afirmação, feita assim, é irresponsável e só ecoa a acusação feita pelos mensaleitos, ora condenados. Por que o jornal não diz qual é a “predisposição vingadora” de Joaquim Barbosa? Por que o jornal não diz, então, quem foi condenado injustamente? Por que não detalha o que considera punição injusta? Eu já critiquei o ministro — ele e outros — algumas vezes. Mas nunca de modo genérico, sem deixar claro qual é o ponto que me incomoda. Parece que, nesse trecho, a Folha só faz uma profissão de fé no “isentismo”, para que os petistas, hoje críticos de Barbosa (que antes tanto louvavam) se sintam contemplados.
Tendo arrostado um partido que continua no poder e cujo chefe desfruta de imensa popularidade, seria decerto pedir demais ao Supremo Tribunal Federal que fosse ainda além, condenando nosso sistema prisional ao evitar que esses réus sejam despachados, sem motivo inarredável que não a letra da lei, para o inferno das cadeias.
Com a devida vênia, é o parágrafo mais intelectualmente malando do texto. O STF não arrostou ninguém, o PT tampouco. O STF aplicou a lei. Se isso implicou enfrentar os petistas e sua máquina de difamação — que agora faz eco até no editorial da Folha, na crítica genérica e sem objeto a Joaquim Barbosa —, eis uma consequência do cumprimento de sua função.
Os motivos que levarão alguns réus do mensalão à cadeia são “inarredáveis”, para ficar na expressão do editorialista, e estão conforme a lei, o Código Penal. Aliás, a comissão que elaborou uma proposta de reforma do texto torna ainda mais duras as penas contra os chamados crimes do colarinho branco. Ademais, não tema a Folha: boa parte dos réus tem curso universitário e desfrutará de condições especiais na prisão — o que não deixa de ser mais um odioso traço de discriminação de classe, não é mesmo?
Quanto ao inferno das cadeias, lutemos, sim, contra ele, sempre sabedores de que estamos lidando com duas ordens de problema: no mais das vezes, está lá quem deveria estar lá, mas não todos os que deveria estar. E os estado deve lhes garantir condições salubres de vida. Mas de vida de recluso. Cadeia é, sim, punição!
Tal desfecho estaria sujeito a interpretações perniciosas. Ignorou-se a lei, tudo termina em pizza, diriam muitos. Evitou-se que os mensaleiros se façam de mártires encarcerados, diriam outros. Nem por isso a prisão desses criminosos terá sido necessária.
Por que não? Impressionante! Não há um só argumento ao longo do texto que explique por que “não terá sido necessária”. Há uma tese sem justificação: só deve ir para a cadeia quem comete crime violento. Ora, isso valeria, desde logo, como uma garantia para os corruptos e corruptores. Ficariam livres para assaltar os cofres públicos, para lavar o dinheiro, para colocar em nome de terceiros o fruto de seu roubo, para enviar dinheiro ao exterior etc… E ainda teriam a chance adicional de fazer caridade para compensar seus pecados…
Não há interpretação perniciosa possível para o editorial da Folha. Há a letra do texto. Trata-se da apologia da impunidade para os crimes do colarinho branco.
Por Reinaldo Azevedo
REV VEJA

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