Os
Cachoeiras e, sobretudo, as cascatas que tomam conta da vida pública
acabam nos levando a deixar de lado alguns temas relevantes, que dizem
respeito não exatamente à política como jogo do poder, mas à cultura
política entendida como uma ética de relação com o outro e com o mundo. Estamos nos tornando um país de fanáticos do sentimentalismo, de pervertidos da reclamação, de ditadores da reparação.
Aquele que tiver a sorte, para desdita de muitos, de manejar o aparato
do estado impõe, então, o seu fanatismo, a sua perversão, a sua
ditadura. E ao arrepio da lei! Lei pra quê? O que importa é “fazer
justiça” segundo a metafísica influente.
Em uma
decisão inédita, a 3º Turma do STJ reconheceu o direito que tem uma
filha, hoje com 38 anos, de receber uma indenização de R$ 200 mil de seu
pai. O crime dele: “Abandono Afetivo”!!! É inútil procurar essa
caracterização em qualquer código. Não existe. Trata-se de um
manifestação de “Direito Criativo” — área em que o Brasil desponta para o
mundo com farta produção —, formulado com base em umas tantas
considerações de ordem subjetiva feitas por juízes. Vocês certamente
acompanharam o caso. Um senhor teve uma filha fora do casamento. Depois
de uma ação judicial, ela foi legalmente reconhecida e assistida
materialmente. Goza de todos os direitos dos demais herdeiros.
Mas reclama que não foi devidamente amada quando criança…
A exemplo da
Lei da Palmada, a decisão da Justiça constitui uma intromissão
absolutamente inadmissível do estado na vida dos indivíduos. Como
mensurar se esse pai deu amor demais ou de menos? Como estabelecer um
padrão mínimo — garantida a assistência material, que existiu — de
dedicação amorosa, de modo que possa ser mensurada num tribunal? O que
sabem aqueles juízes das altercações e dificuldades que pai e mãe, numa
relação não-familiar, tiveram ao longo da vida? Por que é ele,
necessariamente, a o vilão da história?
A relatora do caso, ministra Nancy Andrighi, argumentou por um caminho curioso:
“O cuidado é fundamental para a formação do menor e do adolescente. Não se discute mais a mensuração do intangível — o amor —, mas, sim, a verificação do cumprimento, descumprimento ou parcial cumprimento de uma obrigação legal: cuidar.”
O pai dispensou, segundo consta, o cuidado que está estabelecido em lei. A filha está reclamando é de falta de amor.
“O cuidado é fundamental para a formação do menor e do adolescente. Não se discute mais a mensuração do intangível — o amor —, mas, sim, a verificação do cumprimento, descumprimento ou parcial cumprimento de uma obrigação legal: cuidar.”
O pai dispensou, segundo consta, o cuidado que está estabelecido em lei. A filha está reclamando é de falta de amor.
E, ora
vejam, contrariando, então, o que diz a ministra, é justamente esse amor
que está sendo mensurado. A mulher havia perdido a causa em primeira
instância. Recorreu ao Tribunal de Justiça e ganhou, com uma indenização
fixada em R$ 415 mil. O STJ reformou a decisão para R$ 200 mil. Fico cá
me perguntando: como chegaram àquele primeiro valor? Aqueles R$ 15 mil,
em particular, desafiam a minha quietude: o que ele deveria ter feito
para que fosse, sei lá, apenas R$ 400 mil? Por que o próprio STJ
considerou que o “abandono afetivo” não vale tanto, podendo ficar por R$
200 mil mesmo?
Este trecho da reportagem do Estadão é espetacular:
“A ministra afirmou que a filha conseguiu constituir família e ter uma vida profissional. ‘Entretanto, mesmo assim, não se pode negar que tenha havido sofrimento, mágoa e tristeza, e esses sentimentos ainda persistam, por ser considerada filha de segunda classe’, disse Nancy.”
Entendi. Ela recebeu o devido aporte material, leva uma vida normal, constituiu família, tudo nos conformes. Mas sobrou “a dor”. Ora, Val Marchiori já nos ensinou em “Mulheres Ricas”, certo? Não há dor que o dinheiro não cure… Relooouuu!!
“A ministra afirmou que a filha conseguiu constituir família e ter uma vida profissional. ‘Entretanto, mesmo assim, não se pode negar que tenha havido sofrimento, mágoa e tristeza, e esses sentimentos ainda persistam, por ser considerada filha de segunda classe’, disse Nancy.”
Entendi. Ela recebeu o devido aporte material, leva uma vida normal, constituiu família, tudo nos conformes. Mas sobrou “a dor”. Ora, Val Marchiori já nos ensinou em “Mulheres Ricas”, certo? Não há dor que o dinheiro não cure… Relooouuu!!
Ineditismo
por ineditismo, por que essa filha, que é herdeira do pai (como os
irmãos), não recorreu à Justiça para obter, então, um mea-culpa, um
pedido de desculpas, um reconhecimento público da falta de cuidado
amoroso, um abraço? Não! Nada disso! Existe um preço para a falta de
amor! Era R$ 415 mil, mas pode ficar por R$ 200 mil.
No mérito, o
caso é, parece-me, eticamente escandaloso. Mas também é uma aberração
jurídica. O Judiciário brasileiro acaba de legislar, mais uma vez,
criando o crime do “abandono afetivo”? Cadê a lei, santo Deus? Não há!
Eis aí. Vivemos o que chamo a era dos fanáticos do sentimentalismo —
juízes, agora, acham que podem pôr um preço nas sensações e
subjetivismos. Vivemos a era das perversões da cultura da reclamação:
basta que o “oprimido” saia por aí proclamando a sua dor para gerar
solidariedade automática. Com sorte, encontra pela frente os ditadores
da reparação, que resolverão, como costumo dizer, fazer justiça com a
própria toga.
Está criada a
jurisprudência, embora a decisão não seja vinculante. Cabe a cada juiz
decidir. Mas adivinhem só… Nesse caso, pobre pai!, ele é culpado antes
mesmo de qualquer juízo objetivo. Afinal, teve uma filha fora do
casamento, só reconhecida depois de uma ação judicial, com quem ele não
conviveu — embora tenha cumprido todas as obrigações QUE AS LEIS
EXISTENTES LHE IMPUNHAM. Ele só não sabia que estava na mira de uma lei
desconhecida porque… simplesmente inexistente!
Quanto tempo
vai demorar para que quiproquós familiares comecem a lotar a Justiça
maisdo que hoje? Quanto serão os filhos, mesmo frutos de uniões estáveis
e vivendo sob o teto familiar, que alegarão, a depender dos conflitos,
esse tal “abandono afetivo”? Não havendo lei, pode-se acusar qualquer
coisa: “Olhe, quero dizer que o meu pai (ou mãe) me sufoca”… Pobre pai!
Em breve, estará impedido de exercer, digo com ironia, até aquele papel
que Freud lhe reserva, não é? Não poderá mais ser o saudável repressor, a
quem cumpre dizer que os limites existem. Quem sabe chegue o dia em
que o parricida alegará no tribunal que só cumpriu seu gesto tresloucado
porque seu aparelho psíquico, malformado pelo morto, não operou a
necessária interdição, e a morte simbólica de Laio na disputa por
Jocasta se fez física, pelas mãos de um Édipo que era, sei lá,
contador…
Uma
perguntinha à ministra Nancy Andrighi e a seus colegas: esse valor pelo
“abandono afetivo” foi estabelecido, suponho, com base na condição
financeira do pai, certo? Um homem muito pobre seria condenado a
compensar a subjetividade ferida da filha com um pão com mortadela? O
“abandono efetivo” de Eike Batista custaria R$ 200 milhões, em vez de R$
200 mil? Havendo boas respostas, juro que publico. O pai disse que vai
recorrer ao Supremo. Considerando o que se anda fazendo por lá
ultimamente, corre o risco de a indenização sair pelo dobro. Ou o nosso
Supremo não tem protagonizado cenas explícitas de “Direito Criativo”?
Caminhando para o encerramento, pergunto: a filha vitoriosa troca os R$ 200 mil por um abraço e por um pedido de desculpas?
O assunto
parece besta? Mas não é! A rigor, acreditem, é mais importante do que
essa canalha que vive assaltando o dinheiro público. A cada pouco, há
uma! Precisaos é metê-las na cadeia. Ou bem se tem um estado de direito
funcionando, que proteja a coletividade e os indivíduos, a nação e o
estado, ou ficamos à mercê do indeterminado. Se podemos ser punidos por
um crime que não está tipificado e obrigados a fazer alguma coisa em
razão de uma lei que não existe, então estamos numa ditadura. Ainda que
uma ditadura exercida, com freqüência, por alguns juízes.
REV VEJA
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