quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Sem rei nem lei: a república do pão e circo

O golpe de estado perpetrado pelo marechal Deodoro da Fonseca foi um retrocesso em todos os sentidos. Come­çan­do pela censura à imprensa, cujos jornais eram empastelados e seus jornalistas, presos.
O Estado de Direito continua sitiado no país. Não mais pelos militares e, sim, pelos próprios civis, através do autodenominado “movimento social”, que não passa da velha política de cabresto dos coronéis por outros meios.
Em breve, o Brasil terá uma nova Cons­­ti­tui­ção. Trata-se da Lei Ge­ral da Copa, que revoga todas as disposições em contrário, começando pela soberania da nação e a cidadania dos indivíduos. Em seu período de vigência, durante a Copa do Mundo de 2014, a Lei Geral da Copa irá revogar garantias constitucionais e tornará nulas várias leis federais, estaduais e municipais. Executivo, Legislativo e Judiciário terão seus poderes suspensos e o Estado brasileiro ficará entregue ao governo da Fifa (Federação Inter­na­cional de Futebol). O povo brasileiro, que sempre viveu de pão e circo, vai consolidar sua imagem no mundo: a de País do futebol e do carnaval, em que as pessoas são destituídas de cérebro, pois só funcionam da cintura para baixo — as mulheres rebolando e os homens jogando bola.
Como chegamos a isso? É provável que logo no início da colonização do País, quando foram criadas as Capi­tanias Hereditárias e um português lascivo se apoderou da carne devoluta de negras e índias. Mas é possível que a transformação do Brasil nu­ma espécie de zoológico hu­mano de europeus e norte-americanos — e um dos principais celeiros do turismo sexual no mundo — tenha se agravado em 15 de novembro de 1989, quando a Procla­mação da República fez do Brasil uma verdadeira “Bana­na Republic” (“República de Banana”), termo cunhado pelo escritor norte-americano O. Henry (1862-1910), pseudônimo de William Sydney Porter, no livro Cabbages and Kings (“Repolhos e Reis”). A obra trata da fictícia República de Anchúria, inspirada nas republiquetas despóticas da América Central, especialmente Honduras, onde o próprio William Sidney Porter se escondera antes de ser preso por fraude bancária.
A expressão “banana republic” e seu equivalente “Re­pública de Bananas”, em que pese não constar nem no Aurélio nem no Houaiss, foi dicionarizada em língua inglesa e consta do dicionário Col­lins, publicado desde 1819. Nele, “República de bananas” é definida como sendo um pequeno país hispânico da América Central, politicamente instável e com uma economia dominada por interesses estrangeiros, geralmente dependente da exportação de um só produto, como as bananas. Conforme observa o bioquímico Gregory Petsko, em artigo a respeito das pesquisas sobre o genoma humano, essa definição é um tanto imprecisa, pois há ditaduras politicamente estáveis. Por outro lado, acrescento, Cuba é uma típica “Republiqueta de Bananas”, em que pese fingir não se curvar a interesses estrangeiros. E o que dizer do Brasil, que também não é um pequeno país hispânico e, sim, um quase continente?
Libelo contra a República
A resposta a essa pergunta está num delicioso livro do ensaísta Eduardo Prado (1860-1901), intitulado Fastos da Ditadura Militar no Brasil (Editora Martins Fontes, 2003), uma reunião de seis artigos do autor publicados na “Revista de Portugal” a partir de dezembro de 1889 e transformados em livro em 7 de setembro de 1890. Trata-se do primeiro libelo contra a República, publicado sob o pseudônimo de “Frederico de S.” no calor dos acontecimentos que levaram o marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892) do pijama ao trono. Sim, trono mesmo, pois a República no Brasil, como se vê ain­da hoje, nunca deixou de tratar seus presidentes como verdadeiros reis, transformando o país num quintal de suas idiossincrasias. Ao inaugurar uma dinastia de generais ditadores, que se revezam no poder com civis populistas, o Marechal De­odoro instaurou abaixo do E­qua­dor a maior República de Ba­nanas da história.
É o que mostra Eduardo Pra­do, descrevendo, com verve, os desmandos de nossos primeiros ditadores fardados. Cidadão do mundo, que morava em Paris e viajava constantemente por toda a Europa, especialmente para Lon­dres e Roma, o aristocrata Eduardo Prado foi amigo do grande escritor Eça de Queirós (1845­-1900) e chegou a inspirar o personagem Jacinto do romance A Cidade e as Serras. Ao contrário de seus irmãos Antônio e Martinho, que serviram ao Império e à República, Eduardo Prado não era um político, mas quase foi preso por suas ideias. Não por conta dos artigos de Fastos da Ditadura Militar no Brasil, uma vez que estava na Europa quando de sua publicação e, sim, por seu outro livro, A Ilusão Americana, publicado em 1893, quando já tinha voltado ao Brasil, que estava sob estado de sítio. Este outro livro é uma crítica aos republicanos que queriam macaquear os Estados Unidos, inclusive no novo nome oficial do País — “Estados Unidos do Brasil”.
Todavia, Eduardo Prado não era antiamericano. Era apenas um realista, que sabia notar as diferenças culturais e históricas entre os Estados Unidos e o Brasil, percebendo que nem tudo o que é bom para os norte-americanos é bom para os brasileiros. Mas, ao contrário da democrática monarquia de Dom Pedro II, que engolia as catilinárias do escritor José de Alencar (1829-1877), a sensível República de Flo­riano Peixoto (1839-1895), o “Marechal de Fer­ro”, não a­cei­tava nem esse tipo de crítica e Eduardo Prado, para não ser preso por conta da publicação de “A Ilusão Ameri­cana”, fugiu a cavalo de sua fazenda no interior de São Paulo. Segundo Octa­ciano Nogueira, no prefácio de Fastos da Ditadura Mili­tar no Brasil, Eduardo Pra­do, para escapar de seus algozes republicanos, “embrenhou-se na aventura que o levou a cruzar desde os sertões de Minas e da Bahia até Salvador, onde logrou tomar o navio que o levou como emigrado a Portugal”.
Jornalistas como “fezes sociais”
Nas críticas de Eduardo Prado é possível perceber que a Proclamação da República não passou de um aborto histórico. Assim como a monarquia já havia abolido a escravidão, outras reformas, como o sufrágio universal, estavam prestes a ser enviadas ao Legislativo para serem votadas. O golpe de estado perpetrado pelo marechal Deodoro da Fonseca foi, na verdade, um retrocesso em todos os sentidos. Come­çan­do pela censura à imprensa, cujos jornais eram empastelados e seus jornalistas, presos. O “crime de im­prensa” foi comparado ao de “sedição militar” e os críticos do novo regime, mesmo que por meras palavras, foram chamados de “fezes sociais” no Decreto 85-A, editado pouco depois da Pro­clamação da Repú­blica. Como nota Marco Antonio Villa, n’A História das Constituições Brasileiras” (Editora Leya, 2011), essa linguagem abusivamente ditatorial era até então desconhecida nos documentos oficiais do país.
E como seria recorrente na história do Brasil, não faltaram as “vivandeiras de quartel” nos primórdios da República. Rui Barbosa (1849-1923), ministro da Fazenda do Marechal Deodoro, era um deles, apesar de ter sido monarquista até a véspera do golpe de estado de 1889. Eduardo Prado não o perdoa, vergastando o que chama de “bacharelice revolucionária” do antológico jurista: “Os militares, que no dia 15 de novembro necessitaram de alguns bacharéis com boa prosódia para reduzirem a escrita a revolução do quartel, não andaram mal, chamando, entre outros assessores, o sr. Rui Barbosa”. E ironiza a República para inglês ver que Rui Barbosa propagandeava profusamente para a Europa através dos cabos submarinos do telégrafo: “O sr. Rui Barbosa, ministro das Finan­ças (e, ao que parece, ministro do fio elétrico), tem o telegrama fácil, fluido, longo, monótono, por vezes infeliz e frequentemente contraditório”.
Federalismo de fancaria
Premonitório, uma vez que, convém lembrar, escrevia em 1890, no alvorecer da República, Eduardo Prado já alertava o País: “Em todos os países cultos e livres aprende-se nas escolas que todos os poderes são delegações da nação, que o povo é soberano e governa-se a si mesmo por meio dos seus representantes livremente eleitos. À geração nova no Brasil, a ditadura está ensinando que o Exército e a Armada têm o poder de destruir e de constituir governos — aviltante monstruosidade que envenenará por muitos anos a consciência nacional”. E um dos efeitos imediatos desse poder foi o federalismo de fancaria forjado por uma Repú­blica proclamada no grito, sem quase nenhum lastro social. Como observa Marco Antonio Villa, na última eleição parlamentar do Império, realizada em 30 de agosto de 1889, dos 125 parlamentares eleitos, apenas dois eram republicanos.
Como a República não passava de uma ficção intelectual da religião positivista que vicejava na Corte, quem mais lucrou com ela foram os coronéis dos grotões, que logo aderiram ao movimento. “O temor de que o imperador — ou sua sucessora constitucional, a princesa Isabel — apoiasse um programa de reformas econômico-sociais acabou acelerando o nascimento da República”, afirma Marco Antonio Villa. O historiador acrescenta: “A introdução do novo regime federativo, com a transferência de grande parte dos poderes do governo central para as oligarquias estaduais, propiciou a adesão em massa dos antigos monarquistas. No dia 16 de no­vembro de 1889 todos eram republicanos”. Ou seja, longe significar uma modernização do país, o advento da República foi um rearranjo dos segmentos atrasados da própria monarquia, apoiados pelos militares.
Eduardo Prado observa, acertadamente, que o civilismo do imperador Dom Pedro II, que não cultivava a caserna, traçou o destino da monarquia. “O imperador Dom Pedro II elevou o nível intelectual de seu país sendo um rei civil. Ora, o Brasil, em vez de uma sociedade, seria hoje um quartel, se o imperador fosse não um rei constitucional, mas um major instrutor coroado. Se, em vez de um rei sábio, o Brasil tivesse durante esse período um soberano soldado que, em lugar das bibliotecas, frequentasse os quartéis, em lugar dos museus e das universidades, visitasse os acompanhamentos e as fortalezas, a monarquia ainda existiria decerto no Brasil. O divórcio do imperador das coisas militares, entendidas à espanhola, foi o que salvou a civilização brasileira, mas foi o que perdeu a monarquia”, escreve o ensaísta.
Politização das casernas
Citando o escritor e político francês Alphonse de Lamartine (1790-1869), Eduardo Prado defendia a “obediência passiva” dos militares, isto é, o seu apego à ordem e à disciplina, sem participação política. “Onde não há obediência passiva, surge logo o militar político, entidade cuja presença num país é o mais seguro indício do atraso de sua civilização”. O historiador Mar­co Antonio Villa explica: “O juízes e militares poderiam ser eleitores e eleitos para qualquer cargo. Isso gerou um sem-nú­mero de problemas. Parti­da­rizava as Forças Armadas e o Poder Judiciário e colocava em risco constantemente a lisura das eleições, especialmente nos Estados onde os coronéis exerciam enorme poder político”. Excetuando-se os Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, os militares chegaram a ser governadores em grande parte dos Estados menores, o que comprova o caráter militarizado da República.
Esse cenário de caserna fez da Constituição de 1891 uma letra morta. A pressão militar era até maior do que a exercida no reinado de Dom Pedro I, quando foi votada a primeira Constituição do País. Se naquele tempo, os irmãos Andrada (José Bonifácio, Antônio Carlos e Martim Fran­cisco) pediam ao imperador que recuasse as tropas que ficavam nas imediações da Casa legislativa, na primeira Constituinte republicana simplesmente elas estavam dentro do próprio plenário. “O Congresso estava ocupado por soldados à paisana e policiais. Os constituintes militares estavam armados no interior do recinto de votação”, conta Marco Antonio Villa. A­me­a­çados de ver o Congresso fechado, os constituintes referendaram, com 125 votos, o Marechal Deodoro na primeira eleição republicana, em 25 de fevereiro de 1891. O candidato de oposição, Prudente de Morais, recebeu 97 votos.
Nove meses depois, em no­vembro de 1891, quando a República completava dois anos, o presidente Deodoro da Fonseca fechou o Congresso. Vinte dias depois, ameaçado de golpe por rebelados do Exército e da Marinha, renunciou ao cargo e o poder foi entregue ao vice-presidente (também militar), o marechal Floriano Peixoto, apesar de a Constituição determinar que deveria ser convocada nova eleição. Mas Floriano Peixoto, “nosso primeiro jurista de espada”, conforme expressão de Marco Antonio Villa, entendeu que o dispositivo constitucional não seria aplicável ao primeiro mandato presidencial, só aos sucessores. A oposição recorreu ao Supremo, mas a ditadura prevaleceu sobre a lei. Joaquim Nabuco (1849-1910), que permaneceu monarquista, escreveu a um amigo republicano, ironizando: “Eu pensei sempre que seria mais fácil embarcar uma família do que licenciar um Exército”.
Pantomima de farda
O grau de militarismo da República proclamada pelo Marechal Deodoro num surto de irritação beirava o ridículo. Chegou a ser criado especialmente para ele (e por ele) um posto inexistente no Exército: o de “generalíssimo”. A bizarrice se deu nas comemorações do aniversário de segundo mês do regime, em 15 de janeiro de 1890, quando desfilaram pelas ruas do Rio de Janeiro, em pompa e circunstância, as tropas do Exército e da Marinha (Santos Dumont e os irmãos Wright ainda não tinham inventado o avião, portanto não havia Aeronáutica). O historiador Marco Antonio Villa conta que Serzedelo Correa, secretário de Ben­jamin Cons­tant (1836-1891), prócer civil da República, açulou os populares a ovacionarem Deodoro com os gritos de “viva o generalíssimo”. O velho marechal gostou da bajulação e, por meio de um decreto, criou para si o referido título, justificando a promoção como resultado da “aclamação popular”.
Não satisfeito com a pantomima, Deo­doro, que como Ben­jamin Constant era admirador da Argentina, aproveitou o aniversário da República vizinha, comemorado em 25 de maio, e, celebrando a data, estendeu para todos os ministros civis a patente de “general de brigada”, quatro meses depois de ele próprio se proclamar “generalíssimo”. No decreto, o governo republicano alegou que “hon­ras militares constituem a maior remuneração que excepcionalmente se pode prestar aos beneméritos da pátria, e os ministros civis, por sua dedicação e amor à causa pública, se tornam credores dessa distinção”. Do dia para a noite, Rui Barbosa e seus colegas civis do ministério eram tratados como “generais” pelo “generalíssimo” Deodoro. Edu­ardo Pra­do, que narra o episódio, comenta implacável: “Aquilo já não é militarismo, nem ditadura, nem república. O nome daquilo é carnaval”.
Sem dúvida, uma síntese do Brasil, que permanece atual, haja vista a constante marcha dos desocupados de toda ordem que reivindicam ainda mais direitos. Por isso, o Estado de Direito continua sitiado no país. Não mais pelos militares e, sim, pelos próprios civis, através do autodenominado “movimento social”, que não passa da velha política de cabresto dos coronéis por outros meios. Hoje, milhares de organizações não governamentais — estimuladas pela ONU, apoiadas pelas universidades e financiadas público — ditam a pauta do Congresso Nacional em questões sociais importantes. Elas substituem o eleitor, sem passar pelo crivo das urnas. A famigerada “Lei da Palmada” — aprovada na Câmara Federal sem nem mesmo passar pelo plenário da Casa — é um exemplo desse poder ditatorial. Trata-se de uma absurda tese da ONU encampada pela USP e que será enfiada goela abaixo da população. É a síndrome da ditadura indolor, que finge participação e parece democracia, mas, no fundo, é a pior das tiranias, perpetrando o mal travestido de bem.
José Maria e Silva é jornalista e sociólogo.
Publicado no Jornal Opção de 18 de dezembro de 2011.
DO MIDIA SEM MASCARA

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