sábado, 16 de abril de 2011

Armas: articulador de 2005 vê golpe em 2ª consulta



Adversário do comércio de armas e coordenador da frente que organizou o referendo de 2005, Raul Jungmann tacha de “golpista” a ideia de repetir a consulta à sociedade. Ex-deputado pelo PPS de Pernambuco, ele estranhou o súbito interesse do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), pelo tema do desarmamento.

“Estive na linha de frente do referendo. Não me lembro de nenhuma manifestação do Sarney sobre a matéria”, disse Jungmann. Referiu-se à ideia de realizar um plebiscito em outubro em termos ácidos: “É demagogia, oportunismo. Claramente, trata-se de um golpe”.

Em conversa com o blog, Jungmann perguntou: “E se nós tivéssemos vencido o referendo e alguém viesse propor nova consulta? Seria golpismo”. Para ele, deve-se “respeitar a vontade da sociedade” e fazer cumprir o Estatuto do Desarmamento, “uma lei de 2003 que não saiu do papel”. Abaixo a entrevista:

Apóia a repetição da consulta popular? Não posso concordar.
Mas não é contra o comércio de armas? Mantenho minhas convicções. Menos armas, mais vida. Porém, a sociedade já foi ouvida em outubro de 2005. De maneira insofismável, 64% a 36%, decidiu manter o comércio de armas de fogo.

Esse quadro não pode ter sofrido alteração? Não creio. Em nova consulta, poderia haver mudança nos percentuais. Mas o resultado seria o mesmo.

De onde vem tanta certeza? Pesquisas feitas na época do referendo indicavam que 80% dos brasileiros eram contra armas. Perdemos porque, exposta a assaltos, mortes e seqüestros, a população não quis abrir mão do direito de adquirir, eventualmente, uma arma. Esse quadro não mudou. O Estado brasileiro não tem política de segurança. E não é com nova consulta que vai passar a ter.

O plebiscito não ajudaria a traçar rumos? A vontade soberana do povo já se manifestou. Um dos pilares da democracia é o respeito à estabilidade das regras. Pergunto: E se nós tivéssemos vencido o referendo e alguém viesse propor nova consulta? Seria golpismo. Eu me sentiria desrespeitado.
Acha, então, que refazer a consulta é golpe? Sem dúvida. É demagogia, oportunismo. Claramente, trata-se de um golpe. Plebiscito, hoje, é golpe.

Não vê legitimidade no projeto de Sarney? Não vejo. Estive na linha de frente do referendo. Fui secretário-geral do grupo presidido por Renan Calheiros, à época no comando do Senado. Coordenei o trabalho. Não me lembro de nenhuma manifestação do Sarney sobre a matéria. Desconheço no currículo dele passagens em defesa do desarmamento.

Como nasceu a consulta de 2005? Votamos, em 2003, uma lei que atende pelo nome de Estatuto do Desarmamento. Por iniciativa do Renan, introduziu-se nessa lei um artigo: ‘Fica proibida a venda de armas de fogo no Brasil’. Parágrafo único: ‘Este artigo será submetido a um referendo nacional’.

Deve-se o referendo ao Renan? Ele foi autor da emenda. Agiu provocado por um movimento que fez chegar a ele um abaixo assinado. Envolveram-se, além dos partidos, igrejas, CNBB, sindicatos, OAB, ONGs. Aprovada a lei, foi preciso votar um decreto legislativo marcando o plebiscito. Batalha de dois anos. Não saiu por vontade de uma pessoa, de um parlamentar ou de um rei. Perdemos. O foco agora tem de ser outro.

Qual deve ser o foco? É preciso brigar para instalar chips nas armas, por exemplo. A tecnologia permite e facilitaria o controle sobre fabricantes e usuários de armas.

O que mais? É preciso retirar do papel o Estatuto do Desarmamento.

Não é aplicado? Além de não ser aplicado, vem sendo lentamente desfigurado.
Como assim? A bancada da bala, financiada pelos fabricantes e comerciantes de armas, tenta toda semana incluir novas categorias no rol das autorizadas a portar armas. Tem umas 40 categorias na fila. Deseja-se dar porte de arma a taxistas, advogados, fiscal disso, fiscal daquilo.

— Em que pontos o estatuto não é executado? São muitos. O estatuto pune com pena de prisão a posse e o porte ilegal de armas. Se o atirador do Rio tivesse sido preso antes de promover aquela matança abominável na escola e de suicidar-se, seria apenas autuado. Sem antecedentes criminais, ele teria a prisão relaxada. Assim tem sido. Não há no Brasil uma única pessoa presa por porte ilegal de armas. Desrespeita-se fragrantemente a lei. Há muitos outros despautérios.

Por exemplo. A PF não tem pessoal para fiscalizar as empresas de segurança. Há milhares delas no país, legais e ilegais. A fiscalização dos clubes de tiro e colecionadores de armas continua nas mãos do Exército. Resquício da ditadura. O Exército não tem gente nem interesse. Ainda que se interessasse, não tem poder de polícica, não pode abrir inquérito, não está autorizado a prender. Desgraçadamente, empresas de segurança e clubes de tiro viraram ralos por onde escoam armas.

— Membro de clube de tiro pode comprar armas? Eles têm autorização especial. Mais que isso: quando estão em competição, podem se deslocar com até 12 armas e 3,5 mil cápsulas de tiro. Eles voltam pra casa com quantas armas? Já foram registrados casos de traficantes que se inscreveram nos clubes de tiro para ter acesso a armas. Isso é só uma parte do problema.

Qual é a outra parte? Uma antiga resolução do Exército permite a policiais civis e militares e a oficiais das Forças Armadas comprar, a preços de custo, até três armas a cada dois anos. Nada a ver com a arma de serviço. É para uso pessoal. Em seis anos, o sujeito compra nove armas e munição. Diante do primeiro aperto financeiro, essa gente vende as armas. É outro ralo.

O Estatuto do Desarmamento criou um cadastro nacional de armas. Não serve para coibir esses desvios? Esse é outro aspecto gravíssimo. O cadastro se chama SINARM. É o coração do estatuto. Um banco de dados que deveria centralizar todas as informações sobre as armas legais.

Deveria centralizar os dados ou centraliza? Deveria. Estados que tem a obrigação de mandar as informações não mandam. E não acontece nada. O Exército também descumpre a lei.

Como assim? O Exército tem, há muito tempo, o seu banco de dados próprio, que se chama SIGMA. Lá estão os dados de todas as armas leves em mãos de oficiais e de policiais civis e militares. Armas de serviço e particulares. A lei do Estatuto determinou a fusão dos dois bancos de dados –o civil SINARM e o militar SIGMA—num só. A lei é clara: tem de ser um banco único. Pois bem. Decorridos oito anos, o Exército se recusa a compartilhar os seus dados. E nada acontece. Um acinte.

O que fazer? Deve-se aproveitar o episódio nefasto do Rio de Janeiro não como combustível para golpes oportunistas, mas para reunir forças e fazer o que deve ser feito. Os dados estão aí. Há muito por fazer. O que menos precisamos agora é de um plebiscito.
DO MOV.ORDEM VIG.CONTRA CORRUPÇÃO

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