sábado, 21 de abril de 2018
ÉPOCA teve acesso aos documentos que expõem a compra sistemática de centenas de políticos brasileiros
DIEGO ESCOSTEGUY
ÉPOCA
Demilton de Castro e Florisvaldo de Oliveira estavam suando. No estacionamento da JBS em São Paulo, eles tentavam, sem sucesso, enfiar uma volumosa caixa de papelão num limitado porta-malas de Corolla. Plena segunda-feira e aquele sufoco logo cedo. Manobra para cá, manobra para lá, e nada de a caixa encaixar. Até que, num movimento feliz, ela deslizou. Eles conseguiram. Estavam prontos para desempenhar a tarefa a que Florisvaldo fora designado. E que ele tanto temia. Dez dias antes, Florisvaldo despencava até uma rua na Vila Madalena, também em São Paulo, para fazer uma espécie de “reconhecimento do local” onde teria de entregar R$ 1 milhão em espécie. Seu chefe, o lobista Ricardo Saud, havia encarregado Florisvaldo do delivery de propina para o então vice-presidente da República, Michel Temer. O funcionário, leal prestador de serviço e carregador de mala, não queria dar bola fora. Foi dar uma olhada em quem receberia a bufunfa. Ao subir as escadas do prediozinho de fachada espelhada, deu de frente com a figura inclemente de João Batista Lima Filho, o coronel faz-tudo de Temer. “Como é que você me aparece aqui sem o dinheiro?”, intimou o coronel. “Veio fazer reconhecimento de que, rapaz?” Florisvaldo tremeu. “Ele me tocou de lá”, comentou com os colegas, ainda assustado. Receoso da bronca que viria também do chefe, Florisvaldo ficou quietinho, não contou a Saud que a entrega não fora feita.
Naquele 1º de setembro de 2014, Saud, o lobista, batia as contas dos milhões em propina que distribuía de lá para cá, para tudo que é político de tudo que é partido – a JBS não discriminava ninguém. “Cadê o dinheiro do Temer?” Florisvaldo admitiu sua falha. “Tá doido, Florisvaldo? Vai entregar esse dinheiro agora!” Lembrando da pinta do coronel, o funcionário replicou: “Só se o Demilton for comigo”. Toca Florisvaldo e Demilton a tentar enfiar a caixa com notas de R$ 50 no porta-malas. Demilton, quatro décadas de empresa, é o planilheiro da JBS. A Odebrecht tinha o drousys, o software de distribuição de propinas. A JBS tem Demilton, exímio preenchedor de tabelas do Excel. Demilton topou ajudar o amigo. Os dois deixaram o estacionamento da JBS ao meio-dia. Florisvaldo, meio nervoso, tocou a campainha. Depois de instantes angustiantes, o coronel Lima apareceu. “Trouxeram os documentos?”, perguntou Lima. Florisvaldo já tomava fôlego para carregar a caixa de papelão escada acima, mas o coronel ordenou que o dinheiro fosse depositado no porta-malas do carro ao lado. “Não tem perigo com essa parede espelhada aí?” Florisvaldo era todo paúra. “Não, fica tranquilo.” A transação estava completa.
Aquele 1º de setembro de 2014 era mais um dia intenso na maior compra já promovida no Brasil, segundo as evidências disponíveis, de uma eleição – de centenas de eleições. A JBS dos irmãos Joesley e Wesley Batista, maior empresa do país, viria a gastar, ou investir, quase R$ 600 milhões naquela campanha. R$ 433 milhões em doações oficiais, R$ 145 milhões entre pagamentos a empresas indicadas por políticos e dinheiro vivo – tudo isso já com a Lava Jato na rua. No raciocínio dos irmãos e de alguns de seus executivos, hoje delatores, os pagamentos, seja pelo caixa oficial, seja por empresas indicadas pelos políticos, seja diretamente por meio de dinheiro vivo, eram um investimento por favores futuros ou uma quitação por favores pretéritos. Favores não republicanos, evidentemente. Ou seja, havia uma relação de troca entre o dinheiro que saía da empresa e o que o político fazia por ela – mesmo que essa troca, em alguns momentos, não fosse verbalizada, por tão corriqueira e natural num quadro de corrupção sistêmica. Havia, em muitos casos, uma relação de troca criminosa, que se tipifica como corrupção.
Assim que a delação da JBS veio a público, em maio, a força irrefreável das provas contra o presidente Michel Temer e o senador Aécio Neves, provas de crimes em andamento, assim como a crise política que se instalou imediatamente, escamoteou o poder igualmente destrutivo dos crimes pretéritos cometidos por executivos da JBS – e por centenas, talvez milhares, de políticos. As provas apresentadas foram largamente ignoradas. Como os delatores haviam fechado o acordo poucas semanas antes, a empresa ainda não tinha levantado tudo o que poderia e deveria, em termos de evidências para corroborar os crimes descritos nos anexos da colaboração. Agora, a um mês do prazo estipulado para entregar à Procuradoria-Geral da República todas as evidências necessárias, os delatores e a JBS já dispõem de um novo e formidável conjunto de documentos.
Nas últimas semanas, ÉPOCA teve acesso, com exclusividade, a esses papéis inéditos – milhares deles. Investigou os principais casos ali presentes e obteve informações, reservadamente, junto a alguns dos envolvidos nos episódios mais relevantes dos crimes apontados nas delações. Há planilhões de propina que perfazem quase dez anos de campanhas – da eleição municipal de 2006 à eleição presidencial de 2014. Há comprovantes bancários. Há notas fiscais frias. Há contratos fraudulentos. Há, ainda, depósitos em contas secretas no exterior. Em comum, as evidências corroboram ou comprovam pagamentos ilícitos a políticos, numa escala que, ao menos no Brasil, nem mesmo a Odebrecht atingiu. De 2006 a 2017, a contabilidade da propina da JBS – e outras empresas dos irmãos Batista – a políticos é espantosa: R$ 1,1 bilhão. Mais precisamente, R$ 1.124.515.234,67. Desse volume extraordinário de pagamentos, R$ 301 milhões ocorreram em dinheiro vivo e R$ 395 milhões por meio de empresas indicadas por políticos. Houve, por fim, R$ 427,4 milhões em doações oficiais.
Da primeira parte dessa investigação, que ÉPOCA publica agora, emergem provas consistentes sobre casos conhecidos por poucos, como pagamentos fraudulentos a empresas indicadas por Temer à JBS, na distante campanha presidencial de 2010. Ou, ainda, dos pagamentos igualmente fraudulentos a empresas indicadas por José Serra em sua campanha presidencial, também em 2010. Há as provas dos famosos extratos das duas contas mantidas por Joesley nos Estados Unidos – e não na Suíça – com saldo de propina no BNDES, por combinação com o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega. São aquelas contas cujo saldo, cerca de US$ 150 milhões, serviu para financiar a campanha de Dilma em 2014 – e também dos partidos que toparam, por valores altíssimos, aliar-se a ela.
Surgem com especial força, no entanto, casos inéditos, como a propina de US$ 1 milhão paga a Antonio Palocci, em 2010, por meio de uma conta nos Estados Unidos. Ou os pagamentos em dinheiro vivo ao presidente do Senado, Eunício Oliveira, entre outros parlamentares; e a ministros do governo Temer, como Bruno Araújo, Gilberto Kassab, Helder Barbalho e Marcos Pereira. Kassab, por exemplo, também aparece como beneficiário de um valor extraordinário em propinas, recebidas, segundo os documentos, até o ano passado: R$ 18 milhões.
O acervo, sobre o qual os investigadores da Procuradoria-Geral da República vão se debruçar por meses, demonstra que a JBS comprava sistematicamente políticos de todos os partidos. Não havia critério ideológico; o valor do político era proporcional a sua capacidade de proporcionar benefícios à empresa. Em estados como Ceará, Mato Grosso do Sul e Santa Catarina, onde a JBS tinha mais interesses comerciais, a quantidade de propina distribuída era proporcionalmente maior. Como a JBS tinha interesses e vendas em todo o território nacional, os investimentos em políticos alcançavam o país inteiro, com uma capilaridade superior ao esquema da Odebrecht. Enquanto a Odebrecht, uma empreiteira, atuou no atacado, na compra de políticos maiores, a JBS, no comércio de carne, atuava no varejo, em busca não só dos grandes líderes nacionais, como também dos políticos regionais que poderiam remover obstáculos.
O crescimento da JBS é rápido, explosivo. Entre 2006 e 2014, a receita líquida do grupo cresceu cerca de 2.800%, dos R$ 4,3 bilhões de uma grande empresa brasileira para os R$ 120,5 bilhões características de uma gigante mundial, graças em boa parte ao bom relacionamento com o PT, que lhe proporcionou acesso a fartos financiamentos amigos do BNDES, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Quanto mais crescia, mais a JBS tinha negócios pelo país, mais seus interesses se diversificavam, mais ela precisava do governo e dos políticos. Por isso, no mesmo período, a propina distribuída subiu junto. Os registros internos mostram um salto de 4.900% nos gastos com corrupção, de R$ 12,5 milhões em 2006, ano da reeleição do então presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, para R$ 617 milhões em 2014, na reeleição de Dilma Rousseff. Em 2006, a JBS pagou propina para políticos de 11 partidos em seis estados; em 2014 foram beneficiados integrantes de 27 partidos em todos os estados brasileiros.
Tais volumes necessitavam de um acompanhamento cuidadoso e de uma logística afiada. A operação rotineira da propina era artesanal. Em vez de um Setor de Operações Estruturadas e do drousys, como tinha a Odebrecht, a JBS tinha Demilton e Florisvaldo, os dois funcionários dedicados. Os acertos com os políticos eram feitos por Joesley Batista (na maioria dos casos), por seu irmão Wesley (em poucos casos) e pelo lobista Ricardo Saud, todos colaboradores da Procuradoria-Geral da República. Uma vez que o crédito fosse aprovado por Joesley, Demilton era avisado por telefone ou pessoalmente e se encarregava de combinar com quem de direito. Nos casos em que bastava pagar uma empresa indicada pelo político, Demilton só tinha de cobrar as notas fiscais frias; em alguns casos, nem isso: os interessados entregavam os papéis e Demilton entregava dinheiro vivo. Para depósitos no exterior, Demilton acionava um doleiro chamado Chico, baseado no Uruguai. Demilton organizava a conta-corrente do grupo com Chico: os pedidos de pagamento eram feitos por e-mail e nunca falhavam. Para fazer pagamentos próprios de propina no exterior, a JBS tinha duas contas no banco Julius Bär em Genebra, na Suíça, a Lunsville International e a Valdarco Investments – aliás, foi de lá que saíram os pagamentos para Palocci e para manter o silêncio do doleiro Lúcio Funaro, entre outros que quiseram receber no exterior.
No Brasil havia facilidades das quais só a JBS dispunha. Com clientes no varejo espalhados por todo o país, como supermercados, atacados e frigoríficos, havia um fornecimento garantido de dinheiro vivo para atender à demanda dos políticos. Assim, boa parte dos pagamentos nessa modalidade era resolvida com uma ligação. Seja no Rio de Janeiro, seja em Minas Gerais, Demilton entrava em contato com o cliente e pedia que separasse um valor. Era comum que empresários e até políticos buscassem valores diretamente, tamanha a despreocupação com a operação ilegal. Foi assim com o senador Ciro Nogueira, do Piauí, o principal líder do PP, partido que apoia o governo Temer; foi assim com Raimundo Colombo, governador de Santa Catarina pelo PSD, com o suplente de senador Antonio Carlos Rodrigues, do PR de São Paulo, e com o ministro da Integração Nacional, Helder Barbalho, do PMDB.
No Nordeste, onde a chaga do voto de cabresto ainda persiste e a facilidade para lavar dinheiro em postos de gasolina ou compra de gado é maior, Joesley Batista encarregou o publicitário André Gustavo, uma espécie de Marcos Valério de Pernambuco, para cuidar de entregas de dinheiro. Quando necessário, Joesley autorizava a contratação de um carro-forte e André recolhia o dinheiro nos clientes da JBS e transportava até o político que deveria ser beneficiado. Foi André quem, segundo a JBS, organizou a entrega de propina em dinheiro vivo ao presidente do Senado, Eunício Oliveira, ao senador Jader Barbalho e a seu filho, o ministro Helder Barbalho, todos do PMDB. André Gustavo foi preso nesta semana na 42ª fase da Operação Lava Jato, acusado de ajudar o ex-presidente do Banco do Brasil e da Petrobras Aldemir Bendine a chantagear a Odebrecht, obter uma propina de R$ 3 milhões e lavar dinheiro. Como Marcos Valério, André Gustavo está na cadeia.
O dinheiro para Temer
Aquela entrega de R$ 1 milhão de Florisvaldo ao coronel de Temer, no dia 1º de setembro de 2014, era algo ordinário na vida do funcionário. Estava acostumado ao leva e traz de dinheiro vivo para políticos em todo o Brasil. Menos de um mês depois da segunda-feira de setembro, lá foi Florisvaldo, R$ 250 mil no lombo, direto para a Esplanada dos Ministérios. O destinatário do dinheiro sujo era, dessa vez, Neri Geller, peemedebista então ministro da Agricultura e muito próximo do ex-deputado Eduardo Cunha e do presidente Temer. O dinheiro foi entregue por Florisvaldo no gabinete do ministro. Em meio à Lava Jato. Florisvaldo nem suou.
Aquela entrega ao emissário de Temer, embora evidentemente relevante, era rotina na vida do trio da propina da JBS. Foi apenas uma das que envolveram os repasses de cerca de R$ 600 milhões só em 2014. O pagamento fora combinado entre Saud e Temer num encontro no escritório do peemedebista na Praça Pan-Americana. Os dois já haviam estreitado suas relações e vinham se reunindo com frequência. No começo das eleições de 2014, Temer recebeu Saud em seu escritório e abriu o coração. Estava preocupado. Não gostava de ter de repassar tanto dinheiro a correligionários.
Dos R$ 15 milhões que tinha de crédito com a JBS, com autorização do PT, Temer tinha de repassar R$ 3 milhões a Eduardo Cunha e mais uma quantia a Paulo Skaf, candidato ao governo de São Paulo pelo PMDB, para “fortalecer o partido”. Temia perder aquela disputa. Não gostava, sobretudo, da ideia de ter a companheira de chapa, Dilma Rousseff, e seu partido, o PT, controlando sozinhos o caixa da campanha. “Então, você vai devolver o dinheiro para nós?”, brincou Saud, o lobista que trata todo mundo no diminutivo. Os dois riram. Num tom bem mais sério, já na calçada, na despedida, Temer puxou Saud pelo braço e, entregando-lhe um papelzinho com o endereço do prediozinho espelhado da Argeplan, quase cochichou a Saud: “Preciso de um dinheiro para mim. Mas tem de ser você”.
O lobista, tão acostumado a lidar com propinas, com pedidos de políticos, titubeia sempre que lhe pedem repasse em dinheiro vivo. Ele sabe que sempre que existe cash envolvido há problemas graves nas quadrilhas. A honra entre ladrões não resiste ao toque macio das notas de dinheiro. Se um pilantra diz aos comparsas que cobrou R$ 5 milhões em propina, pode muito bem ter cobrado R$ 10 milhões, embolsado R$ 8 milhões, repassado R$ 2 milhões aos cúmplices e alegar que levou o calote do extorquido. Quem vai chamar a polícia? Nesse meio, tudo é na base da confiança – artigo raríssimo. Naquele mesmo mês de setembro, Eduardo Cunha usara R$ 4 milhões de seu crédito com Joesley Batista para comprar a bancada do PMDB de Minas Gerais. Ricardo Saud pediu ao doleiro Lúcio Funaro, apelidado de Mameluco entre os quadrilheiros, que gerenciava a conta-corrente do PMDB, para entregar o dinheiro a dois expoentes da bancada mineira: os deputados João Magalhães e Toninho Andrade. Não tardou, como Saud previa pela fama dos três envolvidos, começaram a chegar as reclamações. De ambos os lados. Funaro dizia que não ia pagar mais nada aos deputados, que, por sua vez, diziam nada ter recebido. Em quem Saud acreditava? Em ninguém. A turma chegou a fazer reuniões para resolver o impasse. Sem sucesso. Episódios como esse escaldaram Saud. Por mais que os políticos corruptos insistissem em receber propina em dinheiro vivo, Saud resistia. “Sempre dá rolo”, costuma dizer. Que o diga Rodrigo Rocha Loures, o homem da mala com os R$ 500 mil da JBS.
Presidente da Assembleia de Deus Ministério Madureira em São Paulo, o pastor Samuel Cássio Ferreira aparece no material da JBS como destinatário de dez pagamentos de US$ 100 mil, entre outubro e dezembro de 2010. A contabilidade da JBS mostra que quem indicou a conta de Ferreira no banco Wells Fargo da Filadélfia foi o ex-ministro Antonio Palocci. Procurado, por meio de seu advogado o pastor diz nem sequer conhecer Palocci. Mas não nega a veracidade dos documentos e o recebimento do dinheiro. A JBS checou repetidamente seus registros. Os pagamentos foram, de fato, indicados por Palocci. Por que, então, o petista, que arrecadava dinheiro para a campanha de Dilma, indicou, segundo os documentos, o pastor como beneficiário de uma fortuna no exterior? Seria o pastor o destinatário final da dinheirama?
Propina abençoada
São perguntas a que os investigadores da PGR tentarão responder. Mas a aliança entre PT e PMDB, consolidada naquela primeira eleição de Dilma, oferece pistas relevantes. O pastor Ferreira não é novato na Lava Jato. Ele é investigado por ter lavado dinheiro para o ex-deputado Eduardo Cunha, preso em Curitiba. Seu nome apareceu, inicialmente, na delação de Julio Camargo, executivo da Toyo-Setal. Camargo disse que fez pagamentos à Assembleia de Deus, a que Cunha notoriamente é ligado, a pedido do lobista Fernando Soares, o Baiano. Na Receita Federal, o diretor da igreja é Samuel Cássio Ferreira. Duas empresas de Camargo, Piemonte e Treviso, fizeram duas transferências para as contas da igreja, somando R$ 250 mil, em agosto de 2012. Na denúncia contra Cunha, a Procuradoria-Geral da República diz que a justificativa para os repasses foi “falsa”, como “pagamentos a fornecedores”. A suspeita é que o pastor tenha cedido a conta bancária da igreja para Cunha lavar parte dos US$ 5 milhões que recebeu de propina no esquema da Petrobras.
AS CONTAS DA PROPINA DO PT Trechos de extrato das contas das offshores Fromentera e Mustique.
A cada crédito obtido no BNDES nos governos Lula e Dilma, a JBS separava o percentual das propinas nas contas. O dinheiro foi gasto na campanha de Dilma em 2014 (Foto: Reprodução )
Mas não é só a Cunha que o pastor é ligado. O presidente Michel Temer fez questão de convidar o pastor Samuel, cujo rebanho reúne cerca de 8 milhões de fiéis no Brasil, para um culto ecumênico no Palácio do Planalto quando foi empossado no cargo. Em 2014, Samuel e seu pai, o ex-deputado federal Manoel Ferreira, fundador da Assembleia de Deus, apoiaram a reeleição de Dilma e Temer. Ao lado de Eduardo Cunha, o peemedebista voou até São Paulo para agradecer pelo apoio.
Os R$ 30 milhões de Cunha
A nova leva de documentos da JBS joga luz num episódio que será capital na delação de Eduardo Cunha: a compra indiscriminada de deputados, sobretudo do chamado centrão, para garantir a vitória do peemedebista na eleição a presidente da Câmara, em 2015. Cunha, conforme já revelou ÉPOCA, atuou como tesoureiro informal do PMDB em 2014. Cobrava de empresas – como a JBS – e se certificava de que os deputados fiéis fossem devidamente contemplados. Batia contas com Temer, segundo já admitiu seguidas vezes a interlocutores, todas as semanas. Aquele período eleitoral, entretanto, era duplo para Cunha. Tentava se reeleger deputado e, ao mesmo tempo, presidente da Câmara. Precisava abastecer a campanha de seus aliados e possíveis eleitores na Câmara – e, se necessário, sabotar a campanha daqueles que não se vergavam a ele, financiando os adversários… de seus adversários.
Como se descobriu na delação da JBS, Joesley embarcou no projeto de poder de Cunha. Topou repassar R$ 30 milhões ao deputado. De acordo com planilhas e relatos obtidos por ÉPOCA, Cunha centralizou o reparte do dinheiro – e só ele, portanto, poderá revelar a quem entregou os recursos, boa parte em dinheiro vivo. Além dos R$ 4 milhões à bancada mineira do PMDB, objeto da controvérsia que tanto apoquentou os delatores, Cunha determinou o pagamento de R$ 1 milhão, em cash, ao deputado e ex-ministro Marcelo Castro. Gastou outros R$ 10,9 milhões direcionando a verba da JBS para empresas que lavavam seu dinheiro e de aliados. Desse total, R$ 7,8 milhões foram depositados em escritórios de advocacia. Outros R$ 11,9 milhões foram recolhidos por Cunha, em dinheiro, por meio do assessor em quem mais confia, Altair Alves Pinto. Sempre no Rio de Janeiro. Houve, também, doações oficiais ao PMDB. Além de pagamentos de contas controladas por Joesley, na Suíça, a contas controladas por Lúcio Funaro.
A JBS preferia não recorrer a pagamentos no exterior, mas, em alguns casos, não havia jeito. E não era somente com Lúcio Funaro. Para abastecer o PT de dinheiro sujo, a JBS criou um canal específico nos Estados Unidos. Os aportes do BNDES proporcionados pelo governo petista custavam um pedágio de 4%, num acerto feito por Joesley com o então ministro da Fazenda, Guido Mantega. A pedido da JBS, o banco JP Morgan criou duas offshores nas Bahamas, Formentera Holdings e Mustique Enterprises, cujas contas ficavam numa agência em Nova York. Após a liberação de cada financiamento, a JBS calculava os 4% e depositava o valor correspondente, em dólares, em uma das contas, criadas em 2009 e 2010 (leia o quadro abaixo). O saldo superou os US$ 150 milhões. O dinheiro foi gasto na campanha de Dilma à reeleição em 2014: Guido fazia os pedidos de pagamento, Joesley mandava liberar o dinheiro e debitar o valor correspondente das contas. Sofisticado, eficiente e imoral.
O que dizem os acusados
Em nota, Temer diz que “jamais ordenou ao meliante Joesley Batista qualquer pagamento a quem quer que seja. Nem o fez a nenhum de seus capangas”. “Exemplo claro de mentira é que o presidente não cuidou da arrecadação de campanha de Gabriel Chalita em 2012. Já em relação ao candidato a governador pelo PMDB em São Paulo, Paulo Skaf, é preciso lembrar que ele nem sequer apoiou a candidatura a vice-presidente de Michel Temer em 2014. Fato esse amplamente noticiado pela imprensa. Não faria sentido, portanto, buscar recursos para quem não retribuiria politicamente. Só um inventor de histórias da carochinha faria tal construção.” Por fim, diz que “nunca houve pedido de pagamento ao coronel João Batista Lima ou a Elsinho Mouco. A delação é uma peça de ficção, baseada em mentiras e ilações”.
O marqueteiro Elsinho Mouco afirmou, em nota, que Joesley Batista se dispôs, “voluntariamente”, a bancar os custos de monitoramento e proteção digital a Temer durante o impeachment e diz que tem toda a documentação que comprova o trabalho.
Em nota, Eunício Oliveira, presidente do Senado, afirmou que as informações dos delatores sobre os supostos repasses a ele são “inverídicas”, que não conhece o publicitário André Gustavo e que nunca esteve com ele. Sobre os contratos das empresas indicadas por ele e que receberam recursos da JBS, o presidente do Senado disse que não pode “nem deve” se pronunciar sobre “minutas de contratos debatidas entre terceiros”.
Os quatro ministros de Temer implicados nas delações da JBS negam as acusações. A defesa de Marcos Pereira diz que está “à disposição das autoridades para prestar os esclarecimentos necessários e afastar qualquer dúvida sobre minha conduta”. Ministro da Integração Nacional, Helder Barbalho diz, em nota, que “a doação era prevista em legislação vigente à época”. Já a assessoria de Fernando Bezerra Filho, ministro de Minas e Energia, disse que não vai comentar a reportagem porque “o nome do ministro não aparece” em qualquer documento público referente às delações da JBS. O ministro das Comunicações, Gilberto Kassab, diz que a empresa de sua família presta serviços à JBS há anos e que já enviou esclarecimentos à Receita Federal.
A assessoria de imprensa da ex-presidente Dilma Rousseff afirmou, em nota, que “todas as doações realizadas às campanhas de Dilma foram feitas dentro da lei, conforme determina a legislação, registradas e aprovadas pelo Tribunal Superior Eleitoral”. A nota diz ser “inaceitável que, mesmo com os recursos registrados conforme determinam as normas legais, insinue-se agora que o dinheiro teria como origem algum tipo de ilicitude”. O advogado do governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel, disse que as acusações são “tão mentirosas quanto foi a delação”. Em defesa do ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha e do ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto, a assessoria de imprensa do PT disse que “todas as doações recebidas pelo PT aconteceram estritamente dentro dos parâmetros legais, e foram posteriormente declaradas à Justiça Eleitoral”. O advogado do pastor Samuel informou que seu cliente “já recebeu várias doações ao longo da vida, legais e absolutamente legítimas, e isto poderá ser comprovado junto às autoridades competentes se for necessário”. O vice-presidente do PT, Paulo Teixeira, disse que a empresa JBS doou R$ 50 mil no dia 17 de setembro de 2010 e gerou o recibo eleitoral 13001076210. “Nunca pedi e nem recebi qualquer contribuição extraoficial”, afirmou.
A defesa do senador Aécio Neves (PSDB-MG) afirmou que “os valores recebidos da JBS pelo PSDB estão devidamente declarados ao TSE” e que se tratam de “doações oficiais, desvinculadas de qualquer contrapartida ou ilegalidade”. O senador José Serra afirmou que as contribuições recebidas foram declaradas na forma da lei. Em defesa do ex-vice-presidente da Caixa Luiz Rondon, o diretório nacional do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) disse que todas as doações de campanha da empresa JBS nas eleições de 2014 foram feitas por indicação do senador Aécio Neves, presidente nacional do PSDB e candidato apoiado pelo partido na época. O secretário de governo da Prefeitura de São Paulo, Júlio Semeghini, disse que “não recebeu recursos por meio das empresas citadas pela reportagem” e que “todas as doações relativas às campanhas eleitorais que disputou foram apresentadas à Justiça Eleitoral e por ela aprovadas”. O governador do Rio Grande do Norte, Robinson Faria, disse que “recebeu doações da empresa JBS somente durante o período de eleições, oficialmente, legalmente e devidamente registradas na Justiça Eleitoral”.
Em nota divulgada por sua assessoria, o senador Eduardo Braga classificou de “falsa e absurda” a delação da JBS. “A campanha realizada em 2014 seguiu estritamente a legislação eleitoral, o que inclui o recebimento de doações e pagamentos a fornecedores. A prestação de contas foi aprovada pela Justiça Eleitoral”, disse. O senador Valdir Raupp classificou como “invencionice” as acusações dos delatores da JBS. “Não recebi e nunca autorizei ninguém a receber recursos listados em planilhas por delatores da JBS”, disse em nota. O senador Jader Barbalho afirmou que nunca ouviu falar em nenhum dos personagens e empresas citados na delação e que nunca recebeu “um centavo”. “Eu desafio que digam quando, onde e como eu tive algum contato com algum bandido desses”, disse Barbalho. Em nota, a assessoria de Paulo Skaf classificou a acusação de “mentira grosseira” e afirmou que sua campanha ao governo de São Paulo em 2014 “não recebeu nenhum tostão da JBS”. Procurada, a defesa de Eduardo Cunha afirmou não ter conhecimento sobre os fatos citados. O vice-governador de Minas, Toninho Andrade, admitiu ter presenciado uma reunião entre Joesley Batista e Eduardo Cunha, mas disse que a JBS nunca teve nenhum benefício nem negociação ilegal envolvendo ele e a empresa. Ele também disse ser falsa a informação de que teria pedido qualquer repasse de valores ao deputado estadual João Magalhães (PMDB).
Procurados, o ex-ministro da Fazenda e do Planejamento Guido Mantega, o ex-
ministro da Fazenda e da Casa Civil Antonio Palocci, o ex-ministro dos Transportes Antonio Carlo Rodrigues e o ex-deputado Paulo Bornhausen (PSB) não quiseram se manifestar. A reportagem procurou e não encontrou o presidente nacional do PP, Ciro Nogueira, o coronel João Batista Lima Filho e o ex-deputado Gabriel Chalita. O ex-ministro da Saúde Marcelo Castro não foi localizado por sua assessoria. O deputado Baleia Rossi afirmou que não se manifestará sobre um assunto relacionado à produtora de seu irmão.
O advogado do ex-presidente Lula, Cristiano Zanin Martins, disse em nota que as acusações de Joesley Batista devem ser entendidas “no contexto de um empresário que negocia o mais generoso acordo de delação premiada da história. Mesmo nesse contexto, Batista foi incapaz de apontar qualquer ilegalidade cometida, conversada ou do conhecimento do ex-presidente Lula. Considerações genéricas e sem provas de delatores não podem ser consideradas como dignas de crédito e não têm qualquer valor jurídico”. O próprio Lula já afirmara que Joesley “se orgulhava de ser o empresário que mais contribuiu em campanha política e transformou a contribuição em propina”.
29/07/2017
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