Fidel Castro e seu irmão Raúl Castro
(Foto: ADALBERTO ROQUE/AFP)
No
poder, Castro enuncia a equação demiúrgica que lhe permite prosseguir
no comando da Ilha, indefinidamente: “a revolução é a fonte de todo
direito”. A revolução como fonte do poder; o partido, como condutor da
revolução; o “líder máximo”, por sua vez, como condutor do Partido. A
fórmula é banal, usada e abusada pela tradição revolucionária, mas sem
dúvida eficiente. Ao contrário do que ocorre nas democracias
constitucionais, em que a legitimidade é dada pelo sufrágio, e o poder
limitado por regras, em um sistema de pesos e contrapesos, a fonte da
legitimidade revolucionária reside na história. A vitória, em um passado
místico, pela força das armas. Vitória que logo se faz em dobro, quando
o exército castrista, já bem munido de armamento soviético, derrota a
tentativa de invasão da Baía dos Porcos, em abril de 1961, por parte de
exilados cubanos mal preparados, com apoio da CIA. A partir daí, a
guerra é contra o “grande império do norte”. Contra o “bloqueio”. O
enredo da guerra fria se completa. Ele funciona em todos os arrestos,
seve como desculpa para toda a forma de violência e supressão de
quaisquer direitos. Revive dia a dia, mesmo quando o regime vive seu
declínio, como se viu no caso do menino Elian, em 1994. Quanto ao poder,
não obedece a freios. Fidel foi um curioso personagem hobbesiano, bem
sucedido, no que se propôs a fazer. Possivelmente como nenhum outro
líder político do último século.
O
Fidel revolucionário segue o figurino clássico. Em primeiro lugar, é
implacável. Desde os campos improvisados de treinamento para a
guerrilha, ainda no México, impõe a obediência absoluta e a prática dos
justiçamentos. Tribunais improvisados, nenhum direito à defesa, a última
palavra com o “comandante”. Soube se cercar de um punhado de jovens
dispostos a tudo, fieis e talentosos. A começar pelo irmão, Raul,
precocemente comunista, tendo muito jovem, ainda antes de Moncada,
visitado o bloco soviético; Camilo Cienfuegos, Célia Sanchéz, Ramiro
Valdez, e o mais ordodoxo e violento de todos, espécie de místico da
revolução, Ernesto Guevara. Soube também se livrar de qualquer um que
lhe atravessasse o caminho, o que podia significar a mais leve oposição.
Foi assim com Camilo, morto em um mal explicado acidente aéreo, ainda
no primeiro ano da revolução. Foi o caso emblemático de Huber Matos, o
“professor”, herói da Sierra Maestra, que passaria os vinte primeiros
anos da revolução no presídio da Ilha da Juventude, e depois seguiria a
Miami, como exilado e opositor ao castrismo.
Traço
forte da personalidade do “líder máximo” foi, ao longo da vida, uma
incontida aversão ao homosexualismo. Nos anos 60, chegaram a funcionar
na Ilha as UMAP, unidades militares de apoio à produção, espécie de
campos de concentração para o qual eram enviados os suspeitos de
homossexualidade e outras condutas chamadas anti-sociais. À entrada
destas unidades, lia-se a frase: “o trabalho os fará homens”. Em 1970,
Allen Ginsberg, após uma animada e originalmente simpática visita a
Cuba, foi expulso da Ilha após sugerir, em um debate, que uma obsessão
como a do “comandante” seria típica de quem manteve, na juventude,
relações homoeróticas. Nos anos 80, como política de combate à Aids,
Castro cria os famigerados sidatorios, campos de reclusão de pessoas
infectadas, inclusive de crianças. O Caso mais notório da saga
homofóbica castrista foi a perseguição ao poeta Reinaldo Arenas. Sua
história, de adolescente fascinado com os barbudos”, até ser preso, a
tentativa de fuga fracassada em uma câmara de ar, a prisão, a confissão
forçada, o exílio. Tudo retratado em Before Nigth Falls, biografia
transformada em filme, estrelado por Javier Bardem.
Curiosa
foi a relação de Fidel com os intelectuais. Avesso ao livre pensamento,
deixou isto claro desde o início do processo revolucionário. Ainda em
1961, pronuncia o famoso discurso Palabras, na Biblioteca Nacional de
Cuba, diante de uma seleta audiência de escritores, explicitando sua
visão sobre os direitos dos intelectuais cubanos: “dentro de la
revolución, todo; contra la revolución, nada”. Por óbvio, pertencia ao
próprio Fidel a decisão sobre o que significava, a cada momento, estar
“dentro” ou “fora” da revolução. Eufemismos da ideologia. No mesmo ano,
ordena o fechamento do semanário Lunes, dirigido por Cabrera Infante,
determina a submissão de qualquer publicação literária à prévia
autorização do Estado, suprime os direitos autorais e cumpre a risca a
promessa de suprimir todos os direitos aos intelectuais críticos, a
começar pelo próprio Cabrera Infante, Virgilio Piñera e Heberto Padilha,
numa infinita lista que vai até os dias de hoje, com personagens
“históricos”, como Wladimiro Roca e Marta Beatriz Roque, até Reinaldo
Escobar e Yoani Sanchez, fundadores, em 2014, do primeiro jornal
eletrônico independente da Cuba pós 1959, o 14medio.com.
Tudo isto é bastante conhecido. Curiosa sempre foi a adesão
incondicional ao castrismo, por parte de uma turba de escritores e
artistas latino-americanos. A lista é extensa, incluindo notórios
brasileiros, como Chico Buarque, Oscar Niemeyer e Fernando Morais. Neste
campo, ninguém superou o colombiano Gabriel Garcia Marquez em sua
fidelidade ao líder máximo, mesmo nas horas mais sombrias da ditadura
castrista. Razões para isto? Frieza moral? Fascínio pelo poder, pelos
mistérios dos encontros com o ditador irresistível, em alguma madrugada
de Havana? (No caso de Garcia Marquez, uma pequena mansão e um punhado
de mordomias, na Ilha). Talvez. Pensando-se bem, não há nada de mais
nisso. Intelectuais apoiaram o nazismo, o fascismo, o stalinismo. Está
para ser encontrado o criador da lenda de que intelectuais são modelos
de retidão moral.
No
plano internacional, Fidel nunca deixou dúvidas sobre quem eram seus
aliados. Amigo de longa data do ditador Erich Honecker, da extinta
Alemanha Oriental, a quem chamou de “o alemão mais revolucionário que já
conhecera”; aliado desde sempre de Muammar Gaddafi, que lhe concedeu o
curioso “Al-Gaddafi prize for human righs”; de Sadan Hussein, querido
amigo, que o abastecia regularmente de tâmaras; do ditador genocida
Robert Mugabe, do Zimbabwe. Apoiador do ETA e de dezenas de grupos
terroristas, em todo o mundo, Fidel teve como seu último, e talvez mais
espetacular pupilo, o líder venezuelano Hugo Chavez, de quem foi mestre e
íntimo amigo. Um dos inegáveis predicados de Fidel sempre foi
demonstrar, com clareza, de que lado estava e que tipo de mundo suas
ideias projetavam.
Quando
sobrevém a perestroika, sintoma da crise terminal do bloco comunista,
nos anos 80, Castro corre na direção contrária. Afunda-se na ortodoxia
mais delirante. Pressente, com clareza, que uma política de abertura
representaria o seu fim. Antecipou o que ocorreria com o Leste europeu.
Ao longo dos anos oitenta, a palavra que mais teme é “solidariedade”.
Abomina o exemplo de Walesa, a ideia de um movimento social reformista
ligado à igreja. Seu inimigo íntimo é Gorbachev, a quem gosta de chamar
“porco maricas”. Em 1986, anuncia a política de “retificação de erros” e
dá marcha ré qualquer política de abertura. Proíbe o pequeno negócio,
os mercados livres de camponeses, restringe o trabalho individual,
reativa “brigadas de construção”. O processo levou a ilha à maior crise
econômica de sua história, mas permitiu que Castro escapasse de uma
Glasnost cubana, ou terminasse seus dias como um Ceausescu tropical.
No
final dos anos 80, patrocina aquele que ficou conhecido como o último
“processo de Moscou”. Em um “tribunal revolucionário” que conduz
pessoalmente, em todos os detalhes, leva ao fuzilamento o General Ochoa,
comandante da guerra de Angola, condecorado como “herói da república de
Cuba”, e que ainda adolescente havia participado da Sierra Maestra.
Ochoa era um dos mais preparados e admirados militares cubanos,
simpático à abertura promovida por Gorbachov, visto como excessivamente
independente e um potencial líder para uma transição na Ilha. Seu maior
pecado? O maior de todos, conforme lhe disse, lacrimoso, Raul Castro:
atacar a Fidel, “nosso paizinho”. Junto com Ochoa, é também fuzilado
Tony de la Guardia, seu braço direito nos “serviços especiais” e de
espionagem durante três décadas. Tony, a quem Gabriel Garcia Marquez
chamou de “aquele que semeia o bem”. O mesmo “Gabo” que assiste ao
julgamento, incógnito, ao lado do “Comandante”, entre amedrontrado e
fascinado com aquela Macondo superlativa.
Fidel
teve diversas oportunidades de conduzir, ele mesmo, a transição de Cuba
para a democracia. Uma delas no processo da Perestroika. Outra foi no
final dos anos 90, com a visita do Papa João Paulo II, o apoio de
líderes da social-democracia europeia, como Felipe Gonzalez, o Projeto
Varela, desenhado pelo opositor pacífico e moderado Oswaldo Payá, a boa
vontade mediadora do ex presidente Carter. Foi recebido pelo Presidente
Miterrand, no Eliseu, em 1995. Contou com o entusiasmo da primeira-dama
francesa, Danielle Mitterand, que chegou a enviar a Cuba uma imprudente
missão de sua France Liberté, na expectativa de que a abertura de Cuba
se faria com a “mão estendida” a Fidel. A tudo isto, Castro respondeu
com seu jogo duplo. Em En toutes libertés, lê-se a carta desencantada de
Danielle: “não vou conseguir convencer mais ninguém que esteja contra
você, Fidel, se os seus atos e palavras são tão divergentes...Sou
corajosa, talvez temerária, mas não imprudente”. O projeto Varella foi
esquecido, e Cuba tornou-se o curioso caso de um país a espera da morte
do velho ditador para fazer sua transição. Oswaldo Payá, talvez a melhor
pessoa para a conduzir, foi morto em um acidente rodoviário, até hoje
não explicado, em um domingo de julho de 2012.
Ainda
em 2003, três anos antes de deixar que o irmão assumisse a chefia do
governo, Fidel leva a efeito aquela que ficou conhecida como a Primavera
Negra de Cuba. Na madrugada de 18 de março, 75 ativistas de direitos
humanos, metade dos quais ligados ao Projeto Varela, foram presos e logo
condenados, em processos sumários, a penas que variavam de 6 a 30 anos
de prisão. Dentre os presos, 29 eram jornalistas independentes, o que
fez de Cuba, ao longo da primeira década do século, o País com mais
jornalistas presos por delito de opinião. A Primavera Negra produziu,
para o regime, um resultado inesperado: o surgimento das Damas de
Blanco. São as esposas e mães dos ativistas presos, que caminham,
silenciosas, a cada domingo, pelas ruas de Cuba, vestidas de branco e
segurando nas mãos, como num apelo ao bom senso, suas palmas de santa
rita.
Em
julho de 2006, Fidel anuncia seu afastamento das funções de governo e
transmite o poder ao irmão Raul. Faz uma transição em família. Dá
mostras da natureza pessoal de seu poder, e assim o preservou até a
morte. Gasta seus últimos anos redigindo artigos, de quando em quando,
para o Gramna, navegando na internet e recebendo uma romaria de
políticos, entre velhos amigos e novatos em busca de um bom selfie.
Em
2014, Juan Reinaldo Sánchez publicou o A vida secreta de Fidel Castro.
Livro simples, mesmo banal, mas que causou estragos como poucos o
fizeram, na imagem pessoal de Castro. Sanchez, tenente coronel do
exército cubano, integrou a guarda pessoal de Fidel por 17 anos, e
posteriormente conseguiu escapar da Ilha, como um balseiro. Através
dele, ficamos sabendo que Fidel vivia como perfeito ditador cucaracha,
bebendo seu Chivas Regal, em sua ilhota particular, Cayo Piedra, em meio
a uma população sob o regime da libreta e do racionamento. Além dos
aspectos pitorescos, Sanchez trata do envolvimento de Fidel com o
tráfico de drogas, da tortura como prática comum na Ilha, do absurdo do
caso Ochoa. Em especial, oferece um testemunho patético do sistema de
poder absoluto criado por Castro. “Cuba é “coisa” de Fidel”, observa.
Com poder de vida e de morte sobre qualquer um, a qualquer pretexto, ele
é “seu dono, à maneira de um proprietário de terras do século XIX”.
Definição sugestiva para uma regime comunista.
Em
março de 2016, Barack Obama visitou Cuba para selar o acordo de
reaproximação dos Estados Unidos com a Ilha. Obama justificou sua
atitude dizendo que “era preciso mudar uma política que não funcionou
nos últimos 50 anos”. Em uma terça-feira quente de Havana, dia 22,
via-se o presidente americano no Gran Teatro Alicia Alonso falando sobre
“esquecer o passado”, sobre “valores universais como liberdade
religiosa e sobre escolher seus líderes”. Obama agiu unilateralmente.
Reabriu a embaixada americana e flexibilizou a visita de americanos à
Ilha. Cuba não concedeu nada em termos de direitos humanos. Fidel se
manteve quieto. Percebeu o momento para o que seria sua última
encenação: ao invés de reconhecer o gesto de Obama, disse não confiar e
não precisar do “império”. Insinuou que faltava conhecimento histórico
ao presidente americano e que os cubanos poderiam ter um infarto
escutando suas palavras melosas. Na última cena, a grande inversão: ao
invés de “sua” ditadura ser cobrada por abertura e direitos humanos, são
os Estados Unidos que surgem “julgados” pelo seu passado. El Caballo, o
ilusionista, continuou em forma até o fim.
Será
necessário ainda muito tempo e pesquisa para se saber ao certo o saldo
de vítimas do castrismo. O Projeto Cubaarchive.org tem feito um trabalho
notável, e pode ser uma boa fonte de informação. O historiador francês
Pascal Fontaine, no artigo “A América Latina e a experiência comunista”,
publicado em 1998, calcula em mais de 100 mil cubanos vítimas da
repressão, nas prisões e campos de trabalhos forçados, e entre 15 e 17
mil assassinados, em regra via fuzilamentos. A era Castro produziu mais
de dois milhões de exilados, cerca de 15% da população do País, que,
ademais, ostenta o maior índice de suicídios e greves de fome da América
Latina.
Quiçá,
a maior tragédia de todas seja a epopeia dos balseiros. Calcula-se em
cerca de 12 mil o número de cubanos que tentaram a sorte no mar do
Caribe, tentando atravessar, em velhas embarcações, boias de borracha,
cascos de caminhões e velhos buicks, as 90 milhas que separam a Ilha da
costa da Flórida. Está para ser contato o drama humano que envolveu
milhares de pessoas, muitos desaparecidos durante ou após a travessia,
muitos exitosos, e milhares ainda “estacionados” na base americana de
Guantánamo. O caso mais sinistro, envolvendo os balseiros, provavelmente
seja o do afundamento do Rebocador 13 de Março, na madrugada de 13 de
julho de 1994. O Rebocador levava 72 cubanos, tendo sido afundado por
barcos da guarda cubana, a sete milhas da costa da Ilha. Os funcionários
cubanos negaram socorro aos náufragos, o que resultou na morte de
41pessoas, entre os quais 10 menores de idade. A Anistia Internacional,
como de hábito, gastou anos exigindo uma investigação séria a respeito.
Obteve, como sempre, o misto de silêncio e evasivas, por parte do
governo cubano, e complacência, por parte da comunidade internacional.
Histórias como esta definem a tragédia dos balseiros cubanos como um
caso de genocídio.
Fidel
expressou como poucos, na época moderna, o paradoxo, ou o mistério, da
ideologia: a brutal ausência de empatia ou consideração humana,
travestida do mais alto sentido de generosidade. Do exercício permanente
do duplo sentido, da mentira mais absurda, ainda que sedutora. Em 1990,
em uma entrevista ao programa Roda Viva, assegurou que, em Cuba, nunca
houvera “abuso de autoridade ou violência contra a pessoa humana”. Que
não havia “um só caso de assassinato político ou de um homem torturado”.
Para o sintomático silêncio dos jornalistas presentes. Ninguém
perguntou por Eusébio Penãlver, o prisioneiro político de raça negra que
mais tempo esteve encarcerado (28 anos), em todo o mundo, por Antônio
Yebra, Armando Valladares, Pedro Boitel, como ninguém perguntaria por
Orlando Zapata, Oscar Biscet, e milhares de cubanos cujas fotografias,
em preto e branco, habitam sites rudimentares, na internet, pedindo
justiça ou o simples direito à memória. Ler e compreender o que se
passou com cada uma dessas pessoas sempre será a melhor maneira de
conhecer, para além do feitiço das grandes palavras, a identidade de
Fidel Castro.
>> A Doutrina Obama vai mudar Cuba?
O
Cavallo teve um destino imensamente mais generoso do que outros
ditadores, no século XX e XXI. À parte o mais longevo, conseguiu levar a
sua ditadura até o fim. Levou o País aos estertores, mas tirou a sorte
grande de morrer no poder. Com isto escapou de ser julgado pelos
milhares de assassinatos, perseguições em massa, crimes de estado e
crimes contra a humanidade. Sugestivamente, pediu para ser cremado. É
intuitivo, o velho ditador. Nada de restos. Melhor viver na fluidez da
memória. Cuba será livre, algum dia, talvez logo ali a frente, e sua
história será reescrita sem a pátina da ideologia e a vassalagem do
estado policial. Neste dia muitos sentirão vergonha, não tenho dúvidas. E
muitos, hoje esquecidos, serão lembrados.
*Fernando Luís Schüler é Doutor em Filosofia (UFRGS), professor do Insper e curador do Projeto Fronteiras do Pensamento.26/11/2016- DO R.DEMOCRATICA
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