Em artigo exclusivo para o blog, Renan Santos, um dos coordenadores do Movimento Brasil Livre, recupera a origem do espírito que levou milhões para as ruas
Renan Santos
é um dos coordenadores do Movimento Brasil Livre. MBL e Vem Pra Rua —
em companhia de outros grupos — respondem pela convocação e organização
das maiores manifestações da história do país. Foram eles os primeiros a
ter a coragem de apontar que o rei — ou a rainha, se indelicado não
parecer — estava nu. Quando convocaram a primeira manifestação em favor
do impeachment, em março do ano passado, boa parte do establishment
político olhou aquilo com incredulidade. Eis Dilma Rousseff por um fio,
que vai se romper.
No excelente
artigo que escreve para este blog, abaixo, Renan trata do espírito que
anima os brasileiros que ocuparam os espaços públicos para pedir, de
forma ordeira e pacífica, que Dilma deixe a Presidência da República.
Renan trata
da crise de representatividade, da descrença do homem médio nas soluções
tradicionais e da forma como o PT se tornou um agente verdadeiramente
reacionário da vida pública. E constata que é preciso recuperar, sobre
novas bases, a confiança na política.
Eis outra
novidade que os tolos se negam a ver. Os jovens que hoje compõem a linha
de frente do combate aos males que o PT faz ao Brasil são capazes de
pensar com qualidade. Os esquerdistas adoram supor que têm o monopólio
não apenas da bondade, mas também da reflexão. E, hoje, eles se tornaram
monopolistas apenas da justificativa do roubo virtuoso.
Leiam o artigo de Renan.
*
A improvável Revolução de Pessimildo
O fenômeno
responsável pela queda de Dilma Rousseff encontra alguma similaridade
com outras ocorrências mundo afora, mas também é único. A crise de
representatividade política, a ojeriza ao establishment, os movimentos
descentralizados e o uso da política em rede são fatores comuns, mas não
explicam de maneira acurada o momento atual.
Antes de
tudo, nosso movimento representa uma rearticulação de setores médios da
nossa sociedade, que se encontravam dispersos em meio a um mar de
informações e anseios conflitantes, a que esses setores se
mostravam incapazes de dar expressão.
O
aparelhamento de instâncias representativas da sociedade civil, tais
como a OAB, sindicatos, entidades estudantis e igrejas, determinou o
isolamento político do cidadão médio, que, ensimesmado,
resmungava consigo mesmo e para os próximos seu desconforto com a
corrupção, a taxação, os impostos escorchantes, os serviços públicos
pífios — em suma, o “estado das coisas”.
Surgia ali o
“Pessimildo”, o brasileiro médio que representava 40% dos votos em
todas as eleições presidenciais desde 2006, mas que era incapaz de
reunir dez pessoas numa praça para se fazer ouvir. Pior:
era esconjurado em verso e prosa por Lula em sua cantilena anticlasse
média, carinhosamente convertida em “elite branca, de olhos azuis, como o
capeta encarnado, suposto empecilho no caminho da glória, entre copas
do mundo, olimpíadas e ufanismos.
Pessimildo
lutava uma guerra sem quartel. Votava em gente que tinha nojo de seus
valores; era chamado de burro, reacionário, chato e cafona. Seus filhos
aprendiam que Pessimildo era uma categoria histórica a ser superada. E
convinha aos jovens de bom gosto olhar com desdém para suas aspirações.
Na condição
de empresário, convivi muito com Pessimildo. Assitia a suas constantes
reclamações com os juros, os impostos e a legislação trabalhista. Sabe
como é… Ele trabalha no setor privado, o pobre!. Já em 2012, podia
prever que a vaca iria para o brejo. Setores como o automotivo e a
construção civil demonstravam estagnação desde essa época. Indústrias
fechavam aos montes. Mas era proibido ouvir Pessimildo.
A falência
do modelo econômico lulista se deu ao mesmo tempo em que falia seu
projeto político. O “programa de transição” petista se dava na aliança
entre o dito “proletariado”, então representado pelo PT, e o
nosso “Ancien Régime”, materializado nos velhos coronéis políticos do
Nordeste, donos de empreiteiras e empresários convertidos em
aristocracia no capitalismo sem riscos do BNDES.
O
impasse, segundo os petistas, se resolveria apenas com uma reforma
política que concentrasse poderes e verbas nas mãos do partido e com o
silêncio bovino do cada vez mais desacreditado Pessimildo. Cumpre
lembrar: a pauta política artificial que emergiu do cada vez menos
espontâneo “Junho de 2013″ foi a bizarra reforma política petista,
capitaneada por “movimentos sociais” e pela “intelectualidade”
uspiana de esquerda.
Tal reforma,
baseada no financiamento público de campanhas e na lista fechada,
representava uma mão na roda para o beneficiário maior do, nas palavras
da Odebrecht, “sistema ilegítimo e ilegal de financiamento do sistema
partidário-eleitoral” brasileiro: o Partido dos Trabalhadores.
Essa era a
única maneira de romper com os parceiros de ocasião, que se aliavam, mas
com rebeldia crescente, à coalizão governista liderada por
Dilma. Segundo o modelo petista, tais aliados deveriam ser
“dialeticamente” usados e superados pela concentração de poder e
recursos nas mãos de um partido que detinha o controle total da maior
fonte de financiamento político do país. Era pra dar certo. Mas
o encanto se quebrou.
Quebrou
porque “os companheiros” não contavam com o esgotamento do modelo
gastador implementado por Lula e Mantega. Quebrou porque não poderiam
imaginar que algo como a Operação Lava Jato pudesse existir. E,
principalmente, quebrou porque as “Jornadas de Junho de 2013″
representaram um enorme fracasso para a esquerda do PT. Ao invés de
assustarem Pessimildo, levaram-no às ruas. E ele gostou da brincadeira.
As
manifestações de 2013 eram, sim, críticas à gestão Dilma, mas não aos
fundamentos da elite dirigente. Suas reivindicações, se atendidas,
culminariam inevitavelmente em mais Estado e mais governo. Seus
idealizadores, o “Movimento Passe Livre”, continuam batalhando pelos
cantos em conformidade, agora em conformidade com a estratégia
diversionista do Planalto. Sem sucesso! Foi outra a catarse de 2013. A
classe média, ainda que desarticulada e enfurecida, tomou das esquerdas o
comando. Ainda que incapaz, então, de estabelecer uma agenda, impôs
seus sentimentos e frustrações.
Foi assim
que se criou a cultura de resistência que está na nas ruas. A
iconografia e as palavras de ordem de 2015-2016 surgiram em 2013: “sem
violência, sem partido, sem bandeira, camisetas verde-amarelas, MASP,
ojeriza à corrupção…” Estava tudo lá. Já dizia Heráclito: “O ser de uma
coisa finita é trazer em si o germe de sua destruição; a hora de seu
nascimento é também a hora de sua morte.” Junho de 2013 carregava o
germe de março de 2015. O PT começou a morrer ali.
Quando o MBL
convocou sua primeira manifestação, em 1º de Novembro de 2014, sabíamos
que iria dar certo. Aprendemos em 2013 quem era o público a ser
convocado. Já sabíamos os primeiros cânticos, a linguagem comum a ser
observada. Conhecíamos também os erros: sabíamos que era necessário
contar com lideranças legítimas e com uma agenda factível.
O surgimento
do MBL, do Vem Pra Rua e dos demais movimentos de rua possibilitou a
criação de um antes inimaginável tecido político que reagrupou os
milhões de Pessimildos espalhados país afora. Tudo aquilo que fora
perdido em anos de aparelhamento ilegítimo das instâncias
representativas da sociedade civil foi recuperado no prazo de um ano.
Mais: ao contrário de fenômenos similares analisados por teóricos do
mundo em rede — Occupy Wall Street, Indignados, Primavera Árabe — a
revolução do Pessimildo não conta com apoio entusiasmado da academia, da
imprensa e do establishment cultural. Muito longe disso, por sinal.
Esse
organismo vivo, que tomou corpo ao longo de 2015, impôs derrotas
fragorosas a todos os que se colocaram em seu caminho. A oposição
vacilante foi atropelada pelas incisivas manifestações de 12 de abril e
pela Marcha pela Liberdade, que resultou em um posicionamento
pró-impeachment, na Câmara, das bancadas do PSDB, DEM e PPS.
Manifestações pelegas dos outrora temidos “movimentos sociais” viraram
motivo de chacota na Internet. Declarações oficiais eram convertidas em
memes e piadas. Fases da Operação Lava Jato eram narradas como se fossem
fim de campeonato.
Nem setores
da grande imprensa escaparam. A tentativa de transformar o fenômeno em
um Fla x Flu entre Cunha e Dilma naufragou, assim como a cobertura
ultrajante que fizeram das aspirações dos brasileiros que saiam às ruas.
Muito a
contragosto, tiveram de se render à agenda de Pessimildo: levamos o
impeachment ladeira acima e unificamos um país disperso e deprimido. O
monumental 13 de Março serviu como pá de cal para a luta inglória do
jornalismo militante.
O combate à
corrupção deixou de ser “moralismo pequeno burguês” da classe média e
entrou na agenda do dia de todas as classes sociais. Ricos e pobres
querem um país livre da corrupção — e não surpreende que o tema, pela
primeira vez, tenha virado a maior preocupação dos brasileiros, conforme
pesquisa recente da CNI.
Gostem ou
não nossos intelectuais de esquerda, mas essa inédita articulação dos
setores produtivos da nossa sociedade — assalariados e pequenos
empresários — converteu-se numa força política sem paralelo em nossa
história recente. É sólida, pois se baseia na consolidação institucional
de valores já presentes na sociedade civil; é poderosa, pois
comunica-se em rede numa velocidade jamais imaginada por qualquer Marina
Silva.
A Revolução
do Pessimildo é o fenômeno político mais excitante do mundo no
momento. Seu sucesso dependerá de sua capacidade de converter tal
impulso transformador em representação política, seja no Congresso
Nacional, seja nos aparelhos da educação e da cultura que articulam os
valores da política. Será um longo e árduo trabalho.
Mas, como a gente sabe, isso não assusta mais o Pessimildo.
Ele gosta de trabalhar.
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