De
jeitinho em jeitinho, vai-se a Constituição para o brejo, a segurança
jurídica para o espaço e o Poder Legislativo para o outro lado da praça.
Assisti a boa parte das sessões em que o STF deliberou sobre a adoção de quotas raciais para ingresso nas universidades públicas. Praticamente todos os votos foram ornados com líricas declarações de amor à justiça pela igualdade. Estavam dispostos a servi-la às mancheias. O ministro Fux, por exemplo, não falava. As palavras lhe gotejavam como favos de mel enquanto o versejador Ayres Britto ralava os cotovelos na quina da mesa. Joaquim Barbosa cedeu a cadeira a Castro Alves e quedou-se em pé, atrás, feliz por "estar ali, nest'hora, sentindo deste painel a majestade".
A ministra Rosa Maria, tecendo frases como quem bordasse sobre tela,assentou
"que a ação tinha de ser julgada à luz da Constituição, que consagra o
repúdio ao racismo e o direito universal à educação". Foi um alívio,
àquelas alturas, ficar sabendo que a ação seria julgada à luz da
Constituição porque eu já desconfiava de que os votos estavam sendo
iluminados pelos estatutos de algum movimento racial. Contudo, ficaram a
quilômetros das ponderações da ministra as inevitáveis decorrências do
voto que deu: doravante incorrerá em racismo e afrontará o direito
universal à Educação toda universidade, pública ou privada, toda feira
do livro, todo prêmio literário, que não prover as tais cotas. Marco
Aurélio, por pouco, muito pouco, não disse que a adoção de quotas raciais se justifica porque o Estado é laico.
Levandowski,
o ministro-relator, foi saudado como a princesa Isabel da sessão. Só
não lhe deram tapete vermelho e damas de companhia porque não ficaria
bem. Mas sua imensa contribuição para a justiça racial no Brasil o fará
ombrear, na história, com a filha de D. Pedro II. Ao lado da Lei Áurea,
haverá de estar, para sempre, o Voto Diamantino que relatou à corte. O
ministro, contudo, tinha um problema. Havia um preceito, na
Constituição, segundo o qual ninguém pode ser discriminado por motivos
de cor, etc.. E era demasiado óbvio que o regime de cotas raciais feria
essa prescrição ao criar exceções ao mérito como critério seletivo. A
arguição de inconstitucionalidade do regime de cotas alegava que os
positivamente discriminados ingressam na universidade com nota inferior à
obtida por aqueles que, negativamente discriminados, ficam de fora
apesar de haverem obtido nota superior. Como saiu-se dessa encrenca o
ministro? A possibilidade da discriminação positiva não poderia ser
permanente, disse ele. Não poderia ser uma porta aberta para a
eternidade. Precisaria valer apenas enquanto necessária. Só por uns
tempos. Caso contrário, ocorreria a inconstitucionalidade. Capice?
Enxuguemos pois as consequências, provisoriamente, através dos séculos,
enquanto permanece aberta, a montante, lá no bê-á-bá do sistema público
de ensino, a torneira das causas. Mas quem se importa?
De
jeitinho em jeitinho, vai-se a Constituição para o brejo, a segurança
jurídica para o espaço e o Poder Legislativo para o outro lado da praça.
Se o Congresso se omite em legislar, andam dizendo os
ministros-constituintes, o STF precisa agir subsidiariamente.
Esquecem-se de um dado da dinâmica parlamentar: quando o Congresso não
delibera é porque não há entendimento sobre a matéria. E isso é
absolutamente normal, significando que o parlamento, provisoriamente,
decidiu não decidir. Aliás, a ideia de que o Estado precisa emitir leis
sobre tudo e sobre todos é irmã do totalitarismo. Quando, nas normas que
conduzem qualquer organização humana - do estatuto do clube à
constituição nacional - se pretende criar exceções ou regulamentar
detalhes, produz-se uma balbúrdia com efeito contrário ao pretendido. Em
vez de esclarecer, confunde-se cada vez mais. Por favor! Menos leis,
mais liberdade.
DO MIDIA SEM MASCARA
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