As avaliações sobre a recente privatização de três aeroportos brasileiros têm misturado duas coisas: a questão política, enfatizada pela maior parte da oposição e retomada pelo PT, e a da forma e do conteúdo do processo. Ao contrário do que se propalou, as privatizações dos aeroportos de Guarulhos, Brasília e Campinas (Viracopos) não são as primeiras dos governos do PT. Basta lembrar as espetaculares privatizações na área do petróleo, lideradas pelo megainvestidor Eike Batista, sob a cobertura da lei aprovada no governo FHC - alterada recentemente para pior -, e na geração e transmissão de energia elétrica.
Outra ação privatizante digna de menção ocorreu nas estradas federais, a qual fracassou, não obstante o clima de comemoração na época. Fez-se a concessão de graça, pôs-se pedágio onde não havia, mas os investimentos não chegaram, as estradas continuam ruins e o governo federal só faz perdoar as faltas dos investidores. Um modelo furado, que pretendia ser opção vantajosa ao adotado por São Paulo, com vista a dividendos eleitorais em 2010.
O padrão petista de privatização chega ao dinheiro público. O governo faz concessões na área elétrica e as subsidia, via financiamentos do BNDES e reduções tributárias. Não se trata de dinheiro do FAT, mas tomado pelo Tesouro à taxa Selic, repassado ao BNDES a custo bem inferior. Outro exemplo é o da importante e travada Ferrovia Transnordestina. O governo está pagando quase toda a obra, com dinheiro subsidiado, mas a propriedade da concessão é privada. Quem banca a diferença? O contribuinte, é lógico. Quem faz a filantropia? Os governos petistas, cujas privatizações são originais, ao incluírem grandes doações de capital público ao setor privado.
O outro grande exemplo - felizmente, ainda virtual - é o do trem-bala Rio-São Paulo, projeto alucinado que poderá custar uns R$ 65 bilhões, a maior parte de recursos diretos ou indiretos do governo federal e até mesmo dos Estados, via renúncia fiscal, ou dos municípios, que teriam de fazer grandes obras urbanas. O governo quer bancar também os riscos operacionais do empreendimento: se houver número insuficiente de passageiros, o Tesouro comparecerá para evitar prejuízo para o empreendedor privado!
Para alguns representantes extasiados da oposição, com as concessões dos aeroportos, "finalmente o PT se rendeu à privatização", como se este governo e o anterior já não tivessem promovido as outras que mencionamos. Poderiam, sim, ter lembrado o atraso de pelo menos cinco anos na entrada do setor privado na atividade aeroportuária - atraso ocorrido quando a agora presidente comandava a infraestrutura do Brasil.As manobras retóricas do petismo são toscas. O primeiro argumento, das cartilhas online e de grandes personalidades do partido, assegura que não houve "privatização" de aeroportos, mas "concessão". Ora, no passado e no presente, os petistas chamavam e chamam as "concessões" tucanas (estradas em São Paulo, telefonia, energia elétrica, ferrovias, etc.) de "privatização".
Os PT argumenta ainda que a Infraero mantém 49% das ações de cada concessionária. Isso é vantagem? Em primeiro lugar, a estatal está pondo bastante dinheiro para formar o capital das empresas sob controle privado - sociedades de propósito específico (SPEs) - que vão gerir os aeroportos. Além disso, vai se responsabilizar por quase metade dos recursos investidos, sem mandar na empresa.Mais ainda: pagará 49% da outorga (preço de compra da concessão) de cada aeroporto. O total de outorgas é de R$ 25 bilhões, número comemorado na imprensa e na base aliada. Metade disso virá do próprio governo, via Infraero! Isso sem contar os fundos de pensão de estatais, entidades sob hegemonia do PT, que predominam no maior dos consórcios, ganhador do Aeroporto Franco Montoro, em Guarulhos. Tais fundos detêm mais de 80% do grupo privado que comandará o empreendimento!
A justificativa de que a Infraero obterá os recursos para investimentos e outorgas da própria concessão é boba - até porque ela já está investindo nas SPEs e vai sacrificar seus retornos. De mais a mais, quais retornos? As outorgas são obrigatórias, enquanto as receitas são duvidosas. A receita líquida do aeroporto de Guarulhos foi de R$ 347 milhões em 2010. A bruta, R$ 770 milhões. A outorga dessa concessão será paga em 20 parcelas anuais de R$ 820 milhões... Mesmo que a receita líquida duplicasse, de onde iriam tirar o dinheiro para os investimentos? No caso de Brasília, a outorga exigirá cerca de 94 % da receita líquida... Com razão, o senador Francisco Dornelles (PP-RJ), favorável, como eu, às concessões, ponderou: "Com o que sobra é possível entregar a qualidade desejada? Difícil. Difícil até mesmo operar com os baixos níveis atuais, pois sobrará para as concessionárias muito menos dinheiro do que a Infraero tem hoje".
O que poderá acontecer? As possibilidades são várias: mudanças nos contratos, revisão, para cima, de tarifas, atrasos nos investimentos necessários, subsídios do governo e prejuízos para os cotistas dos fundos. Tudo facilitado pela circunstância de que a privatização (um tanto estatizada) tirará o TCU do controle e transparência de gastos com aeroportos... Existe ainda um erro elementar e pouco notado. De todos os consórcios que entraram no leilão foi exigida a participação de uma operadora internacional de aeroportos. Mas os consórcios onde estavam as boas operadoras perderam a licitação. E as operadoras internacionais dos grupos que ganharam são de segunda linha... A Presidência da República reclamou disso, como se não fosse o governo o responsável. O correto teria sido as operadoras internacionais serem introduzidas depois da licitação. Cada consórcio vencedor convidaria então uma operadora, a ser aprovada previamente pelo governo como condição para a homologação da concorrência. É uma sugestão que pode ser adotada nos futuros leilões. Por ora, fica o leite derramado...
Artigo de José Serra, intitulado Mitos e Equívocos, publicado hoje no Estadão.
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