Texto de Manuel Villaverde Cabral, publicado no jornal Observador, a propósito da situação brasileira:A profunda crise política que o
Brasil atravessa conheceu mais um episódio com a recente votação do
Senado a favor da destituição da presidente Dilma. Está, porém, longe de
ter terminado. Enquanto o vice-presidente Temer assume a presidência
interina, abre-se novo período de seis meses durante os quais Dilma terá
a possibilidade de se defender das acusações e poderá até ver a sua
sentença cancelada. É improvável mas não é impossível. Entretanto, o
presidente interino terá os mesmos 180 dias para mostrar o que vale.E caso se mantenha a destituição da
presidente, Temer terá mais um ano até às eleições presidenciais a
realizar no fim de 2018, às quais ninguém sabe ao certo quem virá a
apresentar-se. O mínimo que se pode dizer é que o tempo de que o
presidente interino venha a dispor para mudar as políticas brasileiras
no sentido de conquistar o apoio popular, é escassíssimo, provavelmente insuficiente, ameaçando já a duração da nova coalização.«O discurso do golpe» agitado por Dilma e os seus apoiantes cai, pois,
por terra, já que a mudança operada até agora, além de ter contado com a livre participação do PT e
dos outros defensores da presidente Dilma, não tem à sua frente um
líder assumido nem sequer candidatos a tal. Por ora, além de suspender o
mandato da presidente, tratou-se simplesmente de desalojar o PT do
poder que detinha no país há perto de treze anos com 17% apenas da
representação congressual. Além disso, o PT e os aliados que lhe restam
tão pouco perderam a sua representação no Congresso. Como indiquei no
início do impeachment, a substituição da presidente revelou ser a única
forma de substituir o governo num sistema de «presidência de coalizão»
que aliás se mantém.Ora, uma crise desta dimensão não se inventa nem é um mero epifenómeno
de ódio ideológico. Este pode vir ao de cima, como sucede neste momento
pelo mundo fora, mas não passa de um argumento verbal usado pelos
actores partidários numa crise muito mais profunda e difícil de
identificar na sua plenitude, como bem mostrou Michel Dobry.Com efeito, sem lideranças reconhecidas e muito menos um discurso
elaborado, a crise em curso começou em 2013. Na medida em que não tinha
liderança nem obteve resposta por parte de um governo demasiado seguro
de si, as revoltas inéditas que ocorreram então no Brasil a pretexto da
Copa, sobretudo entre os jovens de grandes cidades como S. Paulo,
apresentavam um caderno reivindicativo normalíssimo em termos de
políticas públicas (saúde e transportes). O governo é que não foi capaz
de reconhecer as reivindicações e muito menos de as atender. Desde aí,
Dilma e o PT perderam o controlo do governo e nunca mais o recuperaram. O
campeonato de futebol fez esquecer momentaneamente as revoltas e o PT
continuou a gastar freneticamente dinheiro com as eleições presidenciais
de 2014 em mira. Com muita dificuldade, Dilma conseguiu vencer, apesar
da debilidade da oposição…Acontece, porém, que as reivindicações de 2013 não só não desapareceram
como foram seguidas, depois do esquema do «Mensalão» com que o PT pagava
os votos dos aliados, por uma vaga devastadora de corrupção em torno da
companhia estatal Petrobrás, cujo início de privatização fôra revertido
por Lula. Entretanto, o dinheiro de que o PT havia disposto encolhia a
olhos vistos com a crise mundial e, em particular, com a quebra do
crescimento dos chamados «emergentes», cujos mercados de importação
haviam sustentado um salto económico do Brasil desacompanhado de
qualquer medida efectiva de modernização política e social. E se este
contexto de crise não atingiu os «emergentes» do mesmo modo que atingiu o
Brasil, é porque este último tem e continuará a ter um sistema
eleitoral liberal.Hoje que foi afastado do governo, o PT acusa os adversários de apenas
pretenderem cortar a despesa com os «pobres», como se o famoso «Bolsa Família»
fosse, independentemente dos prós e contras deste tipo de intervenção
social, uma invenção do partido. E como se o PT não o tivesse usado como
uma máquina clientelar, não tanto pelo dinheiro atribuído, que é uma
pequena percentagem do PIB, mas sim porque atinge dezenas de milhões de
eleitores, em especial nas regiões pobres onde o PT não tinha qualquer
implantação anterior. Não é pois do «Bolsa Família» que se trata, mas
sim daquilo que os governos do PT não fizeram quando houve dinheiro, ou
seja, o já conhecido ajustamento já dos regimes fiscal, previdenciário e
laboral, bem como as reformas político-partidárias de que Dilma chegou a
falar depois da sua curta vitória de 2014, mas foi incapaz de pôr em
prática, sem esquecer os serviços públicos e infra-estruturas à altura
do crescimento que o país conheceu desde que a criação do «real» e o
governo de FHC!P.S. Um leitor
comentou negativamente o uso do termo «coalizão» no meu artigo anterior
sobre a situação espanhola. Tem razão. Embora seja reconhecido pelo
corrector informático, esse termo só é usado no Brasil. O meu deslize
deveu-se ao facto de já não estar a falar do Brasil mas sim da Espanha…
Hoje voltei à «coalizão»! DO O.TMBOSI
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