segunda-feira, 11 de junho de 2012

Prendam a imprensa e deixem José Dirceu solto! Por um Brasil mais decente! Ou: Márcio Thomaz Bastos lutou pela democracia na ditadura e luta por ditadura na democracia. Ou: Bastos pressiona o Supremo!


O advogado Márcio Thomaz Bastos, ex-ministro da Justiça, aderiu, no sábado à noite, à campanha contra a imprensa promovida pelo PT desde 2003, intensificada depois que veio à luz o escândalo do mensalão, em 2005, e tornada grito de guerra com a CPI do Cachoeira. É um tanto constrangedor ver uma das figuras mais estelares do direito, que tem uma história respeitável de defesa da democracia nos estertores da ditadura (foi presidente da OAB entre 1983 e 1985), aderir agora, em plena democracia, a uma forma velada de defesa da ditadura. Exagero? De modo nenhum! E vou demonstrar isso. O que fez Bastos, que é advogado de um dos 38 réus do mensalão? No programa “Ponto a Ponto”, da BandNews, no sábado, afirmou que a imprensa “tomou partido” contra os réus e tenta influenciar os ministros do Supremo com “publicidade opressiva”. Acusou ainda a imprensa de elevar “a um ponto muito forte o mensalão que vai ser julgado, deixando de lado os outros mensalões”. É uma fala indecorosa para o advogado que teve influência importante na indicação de pelo menos 8 dos 11 ministros do Supremo. E isso quer dizer, como vou demonstrar também, que Bastos parece considerar ilegítimo o trabalho da imprensa, mas legítima a pressão que ele próprio está fazendo sobre os ministros.
Note-se, de saída, que o ex-ministro da Justiça, petista de escol, conselheiro de todas as horas de Lula e hoje advogado de Carlinhos Cachoeira, está repetindo as palavras de José Dirceu no encontro da Juventude Socialista. no mesmo sábado. Este monumento moral da política brasileira cobrou que a UNE vá às ruas em sua defesa e em protesto contra o que chamou “monopólio da mídia”. No mesmo evento, lembro à margem, Eduardo Paes (PMDB), prefeito do Rio, “inocentou” a entidade de todas as acusações de malversação de recursos públicos e atribuiu as denúncias — que são, na verdade, evidências — a uma espécie de conspiração dos inimigos, atacando, por óbvio, ainda que de maneira velada, Tribunal de Contas da União, Ministério Público e imprensa. Paes recomendou a Daniel Iliescu, presidente da UNE, “casca grossa” para suportar as injustiças… Pois é! Se a UNE, agora, não puder mais pegar dinheiro público, comprar uísque e apresentar notas frias na prestação de contas, onde é que fica a liberdade dos camaradas, não é mesmo, prefeito?
Eis aí uma das grandes contribuições à cultura democrática dos nove anos de poder petista: a agressão ao trabalho da imprensa independente, a que Bastos adere agora, muito à sua maneira, com a elegância de quem pretende, na aparência ao menos, cultivar ideias que Musil chamaria “magras e severas”, mas que, na essência, remetem aos regimes balofos, de repúblicas bananeiras, pautadas pela impunidade, pela lambança, pelo autoritarismo, pelo mandonismo, pela imposição da vontade dos donos do poder. Cumpre não exagerar no papel de resistência de Bastos durante o Regime Militar. Não foi flagrado em nenhum grande momento de heroísmo, mas se alinhou, sem dúvida com a defesa da democracia quando o regime já dava sinais de fraqueza. Hoje, em pleno regime democrático, nós o flagramos com essa conversinha de cerca-lourenço, que busca pôr em dúvida o papel da imprensa.
“Ah, então a imprensa não pode ser criticada?” Pode, sim! Eu mesmo faço muito isso aqui. Volta e meia, chamo alguém para o debate, para irritação de uns tantos. O confronto de ideias se dá na prática, dado que os veículos de comunicação não comungam de pontos de vista idênticos sobre os mais variados assuntos. Nas universidades, o jornalismo é objeto constante de análise e crítica. Ocorre que não é isso que Bastos está fazendo — nem lhe caberia mesmo esse papel, já que ele é, sob muitos aspectos, parte interessada no assunto. Lembremo-nos que foi da sua cabeça de criminalista que saiu a principal tese de defesa do governo: o mensalão teria sido apenas caixa dois de campanha. Ora, meus caros, não é por acaso que Lula nomeou para a Justiça não um advogado constitucionalista, mas um advogado… criminalista! Na impossibilidade de declarar a plena inocência de seus clientes, sua estratégia de sempre é a chamada redução de danos: “Cometeu um crime, sim, mas não esse que dizem, outro”. Ou ainda: “Cometeu o crime, sim, mas é preciso ver que as circunstâncias…” Um constitucionalista tende a lidar com essencialidades; um criminalista é, antes de tudo, um pragmático. Num governo petista, saber lidar de modo pragmático com ações criminosas é uma exigência profissional.
Intimidação
Bastos está tentando intimidar o trabalho da imprensa e do Supremo. Como é mesmo? “O diabo sabe porque é velho, não porque é sábio…” O advogado é experiente o bastante para saber que sua fala ganharia visibilidade — abre hoje uma página de política da Folha, por exemplo. O objetivo é despertar nas redações uma exigência ética, a saber: garantir aos mensaleiros o direito ao “outro lado”, como se cada reportagem que se fez e se faz a respeito desde 2005 não comportasse a versão dos acusados. Cria-se uma acusação falsa — a do suposto linchamento — para tentar induzir um resposta que transforme aqueles episódios numa guerra de versões.
Muitos farão gostosamente o que Bastos quer. Outros, inocentes ou tontos, cairão no truque de maneira miserável, a ponto de descaracterizar o tal “outro lado”. Atenção! Ouvir as explicações das personagens envolvidas numa notícia não muda a natureza dos fatos. Aproveito aqui para chamar a atenção de vocês, desde já, para uma questão relevante: AINDA QUE OS 38 ACUSADOS VENHAM A SER ABSOLVIDOS DAS ACUSAÇÕES CRIMINAIS — E NÃO COLOQUEM ISSO NA CONTA DAS COISAS IMPOSSÍVEIS, PORQUE NÃO É — ISSO NÃO SIGNIFICARÁ QUE AQUILO A QUE SE CHAMOU MENSALÃO NUNCA TERÁ EXISTIDO. O delírio de Lula, Dirceu e, suponho, Bastos é este: inocentados todos, então tudo aquilo terá sido uma farsa. A eventual absolvição terá o condão de fazer sumir da história as lambanças com dinheiro de Delúbio Soares e Marcos Valério, os saques da boca do caixa nos bancos Rural e BMG, o pagamento feito a Duda Mendonça no exterior, o uso de dinheiro público em benefício do partido? Digamos que a maioria dos ministros do Supremo conclua que toda aquela safadeza se fez sem o conhecimento de Delúbio Soares (o tesoureiro), José Genoino (o presidente do partido) e José Dirceu (então chefe inconteste do PT). Isso a que chamarão “inocência” fará sumir aqueles fatos no ralo da história? A propósito: o STF livrou a cara de Antônio Palocci no episódio da quebra do sigilo do caseiro Francenildo. ALGUÉM OUSARÁ NEGAR, POR ACASO, QUE O SIGILO TENHA SIDO EFETIVAMENTE QUEBRADO? Acho que não…
Cinismo
A acusação de Bastos, ecoando a de Dirceu, tem, ademais, um aspecto de escandaloso cinismo. Como nunca antes na história destepaiz, o dinheiro público — da administração direta e das estatais — financia blogs, sites e revistas cuja tarefa é agredir o Supremo, a Procuradoria-Geral da República, a oposição e a imprensa independente. E se trata de uma ação que não encontra limite nem no crime: a difamação é empalidecida pela injúria, e ambas perdem para a calúnia. Não existe nada parecido em nenhum estado democrático do mundo. E, nesses veículos, à diferença do que se vê na imprensa criticada por Bastos, não existe espaço para o contraditório. O que se faz é o proselitismo mais descarado, mais abjeto, mais servil. ATENÇÃO! Não se trata de uma visão alternativa àquela da chamada grande imprensa. Trata-se do uso do dinheiro público para fazer a defesa de um partido. A maior parte da receita das empresas jornalísticas tem origem no setor privado. Aquela gente faz outra coisa: apropria-se de recursos públicos — que a todos pertencem, petistas e não-petistas — para defender… petistas! Que o Ministério Público jamais tenha se interessado por isso, eis um fato por si mesmo escandaloso.
Bastos é que pressiona o Supremo!
Ao citar o caso Nardoni como exemplo de julgamento injusto (não vou entrar no mérito, ou este texto não tem fim), Bastos foi indagado se o mesmo poderia ocorrer com o mensalão. Respondeu: “Não estou querendo dizer, mas tenho medo que ocorra. Será possível fazer um julgamento com uma publicidade opressiva em cima?” Advogado hábil, no entanto, ele resolveu dar um voto de confiança aos ministros do Supremo — ajudou a escolher 8 dos 11: disse acreditar que essa pressão da imprensa chegará ao tribunal “muito esbatida “.
Huuummm…
Como gosto de escrever aqui (e com elas ganho a vida), “as palavras fazem sentido”. Advogado de defesa de um dos réus, ele, obviamente, considera que o tribunal agirá certo se absolver o seu cliente (e, suponho, os demais). Ocorre que Bastos vê uma “publicidade opressiva” da imprensa e enxerga o risco de que isso influencie o Supremo. Ora, essa influência que ele vê como nefasta só acontecerá, então, se os ministros condenarem os réus, certo? Mas ele é generoso, sabem? Acha que os membros da corte saberão resistir, experientes que são, de modo que a pressão chegará já “esbatida”, fraquinha, atenuada. Entendi. Bastos está dizendo, num exercício elementar de lógica, que os ministros só provarão a sua independência se absolverem os réus. Caso os condenem, então terá sido um sinal de que se deixaram pautar por esta imprensa maligna.
Ora, meus caros, por que, então, não podemos fazer, com igual — na verdade, com muito mais — legitimidade o mesmo raciocínio, mas com conclusão diametralmente oposta? “Se os ministros realmente forem independentes, não se deixarão influenciar por gente como Bastos e vão condenar os réus”. E por que digo que, no nosso caso, o raciocínio é mais legítimo? Por dois motivos:
a) sejam os réus absolvidos ou condenados, o conjunto de crimes a que se chamou mensalão existiu, é fato documentado, inequívoco. Como são atos criminosos, o natural é que haja culpados e que eles sejam punidos;
b) não há um só ministro da corte que deva qualquer coisa à imprensa — e, portanto, não teriam de compensá-la com nada. Com Bastos, é diferente. Sabe-se que ele foi voz influente na indicação de pelo menos oito membros da corte.
Atenção! As palavras fazem sentido! Não estou assumindo esse ponto de vista. Estou apenas demonstrando que, se o tema é independência dos ministros do Supremo — e foi Bastos quem escolheu esse campo argumentativo —, mais ele do que a imprensa ou a sociedade detém instrumentos de pressão. A imprensa que se preza tomou partido, sim, senhor Márcio Thomaz Bastos! O mesmo partido da esmagadora maioria dos brasileiros decentes: o fim da impunidade. Não lhe parece bom?
Afirmei que esse advogado lutou pela democracia na ditadura e agora luta pela ditadura na democracia. Exagero? Não! Ao criticar de maneira leviana o trabalho da imprensa, está engrossando o coro daqueles que querem subordinar  o jornalismo independente aos interesses de um partido político. O petismo lutou para criar meios formais de controlar e censurar a imprensa — ainda se esforça por isso. Como seu intento não prospera, investe, de forma malsucedida, na tentativa de criar um clamor público conta a liberdade de pensamento.
E Márcio Thomaz Bastos, agora, se alinha com eles. Porque, afinal, é um deles. 
Texto originalmente publicado às 6h11
Por Reinaldo Azevedo
REV VEJA

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