A não abertura do processo não é garantia de estabilidade para as reformas; porém, a Constituição e as instituições permitem a transição por este momento difícil
A atuação do governo, dando encaminhamento favorável a reivindicações de deputados e bancadas, mostrou-se eficaz para garantir a vitória ao presidente Michel Temer na sessão de ontem da Câmara, impedindo o Supremo Tribunal de analisar a denúncia de corrupção passiva que pesa contra ele, elaborada pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Por fim, 263 deputados ficaram a favor de Temer e 227, contra. Seriam necessários 342 deputados para levar a denúncia ao Supremo.Foi um erro, como defendido ontem pelo GLOBO. Isso porque a ética deve prevalecer sobre quaisquer outros aspectos, e a lei precisa ser aplicada independentemente de pessoas, partidos e ideologias. A votação de ontem foi de fundo político, pode-se argumentar, mas a vitória de Temer transmite para a sociedade a ideia de que pesos e medidas mudam a depender de quem estiver em questão.
O argumento de que a manutenção de Temer no Planalto é necessária para garantir a estabilidade vem sendo repetido à exaustão, e foi o que aconteceu em vários pronunciamentos de deputados da base do governo na sessão de ontem, presidida por Rodrigo Maia.
No pronunciamento feito pelo advogado de Temer, Antonio Cláudio Mariz, na abertura da sessão, foi dito que a “armação” contra o presidente ocorreu no momento em que o país avançava. Subentende-se que a permanência de Temer garantirá a retomada daquela tendência positiva.
É uma ilusão. Porque é certa pelo menos mais uma denúncia contra o presidente pela PGR, que deve acusá-lo de obstrução da Justiça, no caso do pagamento de propinas ao ex-presidente da Câmara, o ex-deputado Eduardo Cunha, e ao operador financeiro Lúcio Funaro, para que ambos permaneçam em silêncio e não façam acordos de delação premiada.
O assunto é mencionado na conversa entre Temer e o empresário Joesley Batista, gravado por este, em uma noite de março, nos porões do Palácio do Jaburu. Um dos donos do grupo JBS, Joesley relata a Temer que ajuda Cunha e Funaro, e é logo encorajado pelo presidente: “Tem que manter isso, viu?”
Depois, na delação propriamente dita ao Ministério Público, o empresário revelou que já entregara R$ 5 milhões ao ex-deputado fluminense e repassava R$ 400 mil por mês a Funaro, conhecido por ser operador financeiro do PMDB, provavelmente do próprio Temer.
A apresentação de mais uma denúncia — com a possibilidade de haver uma terceira, sobre organização criminosa — reativará a crise política, e o governo mais uma vez será obrigado a concentrar esforços para que aconteça o que houve ontem: que a Câmara rejeite a autorização a fim de que o Supremo analise a acusação da PGR.
O ambiente de crise manterá a hostilidade à aprovação de emendas essenciais ao país. Caso da reforma da Previdência, a mais importante causa do descontrole dos gastos públicos. Em vez de votar no Congresso o que é necessário, o governo terá as energias drenadas, mais uma vez, pela crise. Um mal para o país, contra a retomada do crescimento, para amenizar o desemprego e fazer o Brasil retornar aos trilhos.
Depois de dois anos de grande recessão (8%, índice histórico, e queda de 10% na renda per-capita), a economia parou de cair, mas não ganha tração para se recuperar na velocidade necessária a fim de reduzir um desemprego de ainda 13 milhões de pessoas. Estabilizar o quadro político é crucial para se avançar na agenda das reformas e ajudar a economia.
A própria fragilização de Temer, ao negociar apoio na Câmara contra o pedido da PGR de abertura do processo, já colocou sob ameaça avanços na reforma trabalhista. O imposto sindical, por exemplo, eliminado de forma acertada, pode ressuscitar por medida provisória, batizado com outro nome.
A decisão soberana da Câmara prorroga a crise, em vez de saná-la. O Brasil, porém, até aqui mostrou que é maduro para enfrentar a situação. Como este jornal vem reiteradamente afirmando, não há outro remédio a não ser seguir a Constituição.
É ela que dá o mapa para transitarmos por tempos tão complicados. DO O GLOBO
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