sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Defesa da Constituição ou apego à impunidade?


Uma das vítimas da atual crise moral é a semântica. Quando os senadores chamam a gritaria contra as restrições que o Supremo Tribunal Federal impôs a Aécio Neves de defesa da Constituição, você sabe que está diante de uma crise de significado ou numa roda de cínicos. Quando a supostra defesa da Constituição tem como principal porta-voz o senador Renan Calheiros, você percebe que a crise de significado é terminal.
Quatro dezenas de senadores investigados no Supremo circulam pelo Senado como se nada tivesse sido descoberto sobre eles. Desmascarados, continuam apresentando projetos, votando leis, mordendo verbas do orçamento e indicando apadrinhados para cargos públicos. Além do escudo do foro privilegiado, protegem-se uns aos outros.
O Senado e seus investigados tomam as dores de Aécio Neves num esforço para voltar à rotina pré-Lava Jato, restabelecendo a imensa margem de manobra que assegurava a autoproteção do sistema político. Os senadores querem voltar a um tempo em que eles mesmos faziam as leis, eles mesmos cometiam os crimes, eles mesmos se absolviam nos seus conselhos de ética. Nesse mundo particular que os senadores querem de volta, a defesa da Constituição vira um outro nome para a luta pela impunidade. DO J.DESOUZA

Aécio escolheu sua própria trilha para o inferno

Josias de Souza

Deputados e senadores em conflito com a moralidade já se deram conta de que, se houver inferno, ele está localizado na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal. Em contraposição, se Deus tiver de aparecer para um parlamentar investigado não se atreverá a surgir em outra forma que não seja a de um processo com tramitação na Segunda Turma da Suprema Corte. Aécio Neves estava no céu. Dormiu no ponto. E mastiga o pão que o Tinhoso amassou.
Aécio pediu e recebeu de Joesley Batista, da JBS, R$ 2 milhões em verbas de má origem. Seu processo subiu para o Paraíso da Segunda Turma. Caiu na mesa de Edson Fachin. Relator da Lava Jato no Supremo, Fachin foi draconiano. Determinou a suspensão do mandato de Aécio, recolheu seu passaporte e proibiu-o de contactar outros investigados.
Assustado, Aécio autorizou seus defensores a pedir a troca do relator. Alegou-se que o processo sobre os R$ 2milhões da JBS não deveria estar nas mãos de Fachin, pois não tem nenhuma relação com a Lava Jato. Por mal dos pecados de Aécio, Fachin concordou. Enviou os autos para a redistribuição. Por sorteio, a encrenca foi à mesa do ministro Marco Aurélio Mello, no inferno da Primeira Turma.
No céu do Supremo, investigados não perdem por esperar. Ganham. Se não tivesse fugido de Fachin, Aécio já teria percebido a essa altura que o relator da Lava Jato tornou-se minoritário na Segunda turma. No exemplo mais notório, Fachin foi vencido por 3 votos a 2 no julgamento do recurso que abriu a chave da cela de José Dirceu. Liberaram o grão-petista os ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski. Ficou do lado perdedor, junto com Fachin, o decano Celso de Mello.
Deu-se o oposto no caldeirão da Primeira Turma. Ali, em decisão individual, o relator Marco Aurélio devolveu a Aécio o mandato parlamentar, o passaporte e o direito de conversar com quem bem entendesse. Mas o então procurador-geral da República Rodrigo Janot recorreu. O tempo passou. E Aécio percebeu da pior maneira que a generosidade processual de Marco Aurélio é minoritária no inferno. Pelo placar de 3 votos a 2, o grão-tucano voltou a ter o mandato suspenso e o passaporte recolhido na última terça-feira. Pior: Aécio foi proibido de deixar sua residência à noite.
O ministro Alexandre de Moraes acompanhou Marco Aurélio no refresco. Mas Luís Roberto Barrosso abriu divergência. Além de restabelecer todas as restrições que Fachin impusera a Aécio, Barroso sustentou que não faria sentido manter em prisão domiciliar três cúmplices secundários do senador sem impor nenhum tipo de limitação ao direito de ir e vir do “mandante”.
Não havia hipótese de decretar a prisão requerida por Janot, pois a Constituição condiciona a tranca de parlamentares a um flagrante de crime inafiançável. Assim, Barroso optou pelo recolhimento noturno de Aécio, uma sanção prevista no Código de Processo Penal como coisa “diversa da prisão.” O voto de Barroso foi acompanhado por Rosa Weber e Luiz Fux.
Na época em que ainda cuidava do processo, Fachin mandara prender a irmã de Aécio, Andréa Neves, porta-voz do pedido de propina de R$ 2 milhões; Frederico Pacheco, o primo que o senador destacou para apanhar parte do dinheiro vivo em mochilas; e Mendherson Souza Lima, um assessor do senador Zezé Perrella (PMDB-MG), que ajudou a esconder um pedaço da propina.
Posteriormente, numa concessão rara, a rigorosa Primeira Turma deferiu o pedido de transferência dos três prepostos de Aécio para a prisão domiciliar. Daí a tese do ministro Luís Barroso segundo a qual não faria nexo a mesma Turma de magistrados deixar o mandante do crime livre de uma sanção análoga.
Aécio e os senadores que tramam socorrê-lo, derrubando a decisão do STF no plenário do Senado, acusam a Primeira Turma de violar a Constituição. Sobre esse tema há enorme controvérsia na praça. Mas há algo incontroverso no enredo protagonizado pelo ex-presidenciável tucano: Aécio Neves exerceu em sua plenitude o direito de escolher o seu próprio caminho para o inferno.